quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Só Acaba II

Fez questão de deixar a porta aberta, saiu quase bêbada. Ficou o cheiro do cigarro nos dedos, a marca de saliva no copo deixado sobre a mesa na cozinha e o lixo que nunca foi dela: absorventes sujos, preservativos usados, papel higiênico com urina e um homem invisível que não chorou uma lágrima sequer. Oswaldo Montenegro ressoava em sua cabeça como bandolins em valsa. Fora isso se concentrava em chegar ao ponto de ônibus mais próximo, mas preferiu desviar o caminho e foi em direção à Avenida Beira Mar. “Como pode um côco ser dois reais?!” Não interessa. Não ousou dizer nada, nem mesmo ouvir, lambia o mar com os olhos, não era salgado, parecia distante.
Por perto um pescador, fotografou. Imaginou um verso qualquer de Leminski, Chico Buarque ressoava alguma coisa que não compreendia na sua mente, mas era sobre ela. De fato acreditava nisso. Viu um assalto, achou até engraçado aquele homem branco com as mãos na cabeça e logo em seguida dando de ombros. 
— Bom dia, meu amor.
— Bom dia.
— Sonhei com você, foi bom.
— Como foi?
— Não lembro, mas era bom. — Comprei vinho.
— Legal.
— Mas é vinho seco.
— Você sabe que eu não gosto.
— Eu não comprei pra você, só quis falar que comprei.
— Ah, tá.
— Tenho que ir trabalhar.
— Tá bem, te amo.
— Também.

O também não significava eu te amo, ela enfim pôde perceber. Sempre quem se despedia com eu te amo era ela. Afinal o ocupado sempre era ele. Enfim soube que eu te amo também não é tchau. 
Tinha muitos livros dele, decidiu não devolver. Ao chegar em casa pôs os livros sobre a cama, abriu alguns e os riscou a lápis com versos de Neruda e Pessoa, trechos de músicas da Maria Bethânia. Abriu um Kundera velho e atrás da orelha escreveu

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.


Acrescentou o seu nome, a data e desenhou um sorriso. Quando terminou lembrou de Tereza, sentiu afeto por Sabina, odiou Tomas e sentiu pena de Franz. Sentia-se demasiadamente leve. O gato se aproximou deitando-se ao lado dos livros, o chá esfriou. Sentiu vontade de chorar, sentiu até um medo quase instintivo. Deixou entrar e sair tantas coisas na vida, mas nunca fora ela que decidira o que colocava dentro ou tirava para fora de si, uma vez que sempre pedia a alguém para fazê-lo.
— Preciso terminar o artigo. — falou sozinha.

Olhou na janela e viu o cenário da favela por trás do seu pequeno apartamento. Crianças correndo, esbaforidas. Bola, bila, concreto, gritos de mães, cerveja na esquina, dominó. Sentiu vontade de chorar mais uma vez e percebeu que sequer sabia onde estava o celular quando quis telefonar para conversa com alguém. No whatsapp centenas de mensagens, nenhuma pra ela. Dormiu no tapete da sala. O gato ficou no quarto e o chá continuou frio sobre o criado mudo.


"— Eu vou te amar pra sempre.
— Eu também, meu amor.
— Passei o dia pensando em você.
— Eu também.

Ambos mentiam e sabiam disso.

— Vou dormir, amanhã tenho que ir trabalhar.
— Ah, tá bem, amor. Te amo.
— Também te amo."


Por que não tinham coragem de dizer boa noite?

Dormiu demais, acordou tarde, decidiu não ir à faculdade.

— Vou fazer bolo.

Enquanto assistia Friends o comia acompanhado de chá.

— Oi, filha. Tudo bem? Não liga mais pra sua mãe.
— Oi, mãe. Tudo bem sim e com a senhora? Desculpa, ando ocupada.
— Imagino, tá na aula?
— Não, tô em casa.
— Mamãe fez um bolo tão gostoso, queria que você tivesse aqui, só lembrei de você.
— Ah, também fiz bolo.
(...)
— Quando você vem aqui?
— Não sei, mãe. Acho que quando tiver o próximo feriado eu vou...
(...)
— Tchau, manda um beijo pro Caio. Diga que estou com saudades e que depois mando um bolo pra ele.
— Tchau, mãe. Beijo.

Ainda com o celular em mãos pensou em digitar “bom dia”. Desligou o celular. Apertou play.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O Céu de Ana

— Ele assumiu namoro.
Era o dia de seu aniversário. 
Teimando em muitas vezes se esconder. Era bastante notório e até comum ao derramar sua vida sobre estranhos.
— Por que você tá contando isso pra ele?
— Sei lá. Ele é simpático.
A reprovação não existia.
— Eu não acredito em amor.
Não dava nem sequer para dizer que era a resposta mais fácil.
— Sabe quem eu vi? O Rafael, ele tava com uma menina no shopping. Ela era bonita.
— Por que você tá me dizendo isso?
— Sei lá. Por dizer.
— Eu não quero saber. Isso não me interessa. — interessava sim.
As amigas diziam o que sempre as amigas dizem, para seguir em frente, esquecer, curtir, etc.
No céu de Ana as estrelas só brilhavam à força, quando ela fechava os olhos todas se apagavam.

domingo, 30 de novembro de 2014

(Re)acostumar-se

"Depois de muito, muito tempo, a velha vontade volta. Na verdade, ela sempre acreditou que essa vontade tivesse permanecido adormecida em alguma parte do passado. Foi preciso que parte do passado, levasse com ele várias lágrimas e sussurros desesperados até que a vontade se manifestasse de novo. 
Dessa vez, diferente. A vontade é manifesta noite após noite, beijo após beijo em cada boca vã cujos lábios de cigana resolvem descansar. Aos poucos, a vontade vai se desprendendo, se dissipando feito névoa em mar revolto. Evaporando junto com as memórias, foram-se os afetos e permaneceram as despedidas. De cigana, permanecem os olhos e os lábios, leves; oblíquos na linha do horizonte. Atenta a qualquer mudança de maré.
A menina volta a girar, a pequena dança, até levantar vento por si mesma. Sem fim. Agora é que a história começa. Azul é a cor mais inconsequente. 
Ela crê nos encontros unidos pela vida, não foi à toa que foram parar naquela sessão, naquele filme, naquela boa sorte uma metáfora de vida. Não era sobre se apaixonar por quem está morrendo, mas era sobre criar laços, por menores que sejam, por quem partirá, em breve. Aquele mar leve que chegava até os seus joelhos, era o mesmo mar que meses antes a havia feito se afogar tantas vezes. O mar que batia nas pedras, molhava seus olhos de cigana, afogava as lágrimas de uma tempestade passada. 
A vontade se sobrepunha às despedidas, pela primeira vez em tanto tempo desencontrado. Naquelas pedras, muitos se foram e outros nem sequer chegaram. Cigana sentiu o sal do tempo no rosto, nos cabelos e o mar leve parecendo uma ampulheta. O tempo passava e ele permanecia ali, por horas revolto, por horas ameno. E, pela primeira vez em tanto tempo, a solidão fez morada.
Cigana, então, entendeu que partimos para algo novo todos os dias, que é preciso re.acostu.mar-se, pois a hora do encontro é também despedida. Naquela praia, naquela rua, muitos começos. Na mesma praia, na mesma rua, muitas partidas. Não era mais sobre não conseguir criar laços com ninguém, agora é sobre criar laços diferentes com pessoas que, a cada dia, partem um pouco mais.
Cada encontro é também despedida. Naquela boa sorte, uma metáfora da vida: os dois seguem, separados, semeando encontros e colhendo despedidas. E, pela primeira vez em muito tempo, a solidão a fez sentir completa. Sem fim.

“Gire, pequena cigana, que girar faz vento em você mesma”."



sábado, 29 de novembro de 2014

A Ciranda Acabou de Começar

Quando o mar se levanta junto com o corpo que repousa sobre ele, vem do outro lado as casas inundadas de areia, água e sal. O mesmo sal que desce dos meus olhos quando, neles, entra areia. 
A água batia em minhas costas e passava por debaixo de mim, alinhava as pedras, turvava a visão. Era noite e a lua se escondia. Assim como também se escondia o inverno nos dentes, nos sorrisos que mordem e deixam gosto de sangue no beijo.
Repousar a cabeça e acariciar a têmpora como quem pede desculpas e reluta na insistência por meio de uma descrença infundada, oxalá inventada. Assim foi por muitas vezes apenas duas. Dois eram muitas coisas.
Aquele mar pesava, batia nas pedras, me molhava e trazia no sal as lágrimas da outra cidade inundada pelo seu aterramento. Crianças andavam sobre aquelas águas constantemente. Bêbados o urinavam de instante em instante. Diabos se atiravam daquela ponte o tempo inteiro.
Foi noutro dia que se repousava sob um sol que se esvaía na linha do horizonte infinda e quente. No toque sobrepujado de tal maneira a deixar na mão apenas rápidos lábios.
Esqueço nossos nomes em cortinas e véus, olhos fechados em solidão. Silêncio que invade e transborda toda a palavra, todo o sexo, todo o mundo.
Todo mundo é mundo, toda gente é linda.
Naquele mar muitos se foram e outros tantos nunca sequer chegaram, quiçá ousaram respirar aquele cheiro. Um cheiro no cangote, jogo vadio de abrir corpo fechado. Que corpo fechado que nada, ela estava nua! 
E descabelada, e assanhada, os olhos fechavam com o toque de mãos aperreadas, torturadas, machucadas pelo tempo e pelo violão. 
A solidão invadia junto com o silêncio e o mar às vezes batia forte na lua vadia, escondida, dissimulada.
Noites adentro com o pulsar da escuridão roubada pelas luzes dos postes na Praia de Iracema. Anoitecia em cada sorriso naquela praia inventada. Adormecia em cada peito daqueles moribundos olhos que escarneciam na grama vomitada dos monumentos municipais.
Uma praia inventada, ou melhor estuprada.
Uma praia afogada, tarde demais para se importar porque não havia ninguém por lá além dos casais também inventados.
As fotografias que se parecem e que causam desconforto. Peitos que doem, que respiram fundo, arquejam a dor de um gozo subtraído no esquema que desliza entre uma boca e outra, entre uma língua e outra, acompanhado de cerveja, coquetel composto e cachaça.
Mas em outrora apenas o silêncio e os olhos, as bocas que murmuravam impropérios existenciais sob o sol que esvai adiante na falsa segurança de se estar sentado sobre o mar. De se estar em zona de conforto subalterno nos dentes de inverno, nas bocas de verão; longe do carnaval, muito perto do natal.
Você não sabe a diferença do que significa “todo o tempo” e “complicar a vida”. Apenas prováveis problemas que repousam sobre olhos que fecham fácil com o toque nos cabelos. Eu gostaria da noite, uma canção para o mar, repousar mar adentro e me afogar naqueles lábios. Adormecer naqueles olhos e me sentir quente com o corpo todo molhado, com o corpo nu e suado.
E foi assim que morri afogado meia dúzia de vezes.




terça-feira, 11 de novembro de 2014

Further Back

Um aborto ao léu, inconsequente. E uma bala passeava pelas ruas da cidade à procura de alguém perdido que quisesse se encontrar. Não foi uma morte instantânea e isso deu margem a uma eternidade de dor, mas não se pode dizer que era, ao mesmo tempo, sofrimento. Afinal, não, não era.
— Se algum dia eu te ver com outro arrancarei seus dedos para que nunca mais segure nas mãos de ninguém.
— Engraçado você dizer isso porque eu nunca arranquei seus olhos.
— Acho que eu poderia arrancar sua língua também.
— E assim o que restaria?
— Você tem sorte de ainda estar viva.
— Você tem sorte de eu nunca ter te machucado.
Para isso não havia resposta.
— Me ligue de vez em quando.
— É que ando muito ocupado.
— Tenho saudades, às vezes choro.
— ...
Para isso havia muito que falar, mas nenhum dos dois ousou.
A luz, o frio. 
No quarto, no móvel ao lado da cama, fotografias desbotadas pelo frio. Seu corpo ardera tantas vezes naquele colchão velho que já não sentia mais frio algum, nem mesmo quando os ossos tremiam ele ousava usar um cobertor. Permanecia nu e assim cruzava o apartamento inteiro, de um canto a outro. Entrava no banheiro, saía do banheiro. Abria a geladeira e tomava água direto da garrafa para as visitas. Por alguns segundos olhava o branco no vazio que só contrastava com uma cebola cortada pela metade, duas garrafas d’água e três ovos.
Por muitos anos levou a vida na luz negra da escuridão. Respirava sofregamente. Solitário, procurava por uma mão e não achava nenhuma a não ser a sua já tão velha e conhecida, calejada do violão e do ônibus.
No seu quarto entrava e saía gente estranha quase todos os dias. Muitos pés já subiram naquela escada, alguns nunca mais desceram de volta, mas não se sabem onde foram parar. Talvez absorvidos pelo tempo ou sugados pela energia que saía de seu peito. Crescia cada vez mais intensa, cada vez mais profunda, cada vez mais inóqua.
No ínterim do sacrifício de perdoar, às vezes se permitia ao sortilégio de soltar um grito agudo enquanto tomava banho.
Ela apareceu e levou seus amigos, havia calcinhas por todos os lados. Aqui e ali uma pintura no cinza das paredes. O chão do apartamento ainda era frio. A cama era quente como nunca, ardia em chamas, mas parecia mais o inferno. Nunca foi fácil pra nenhum dos dois.
— Você comeu a minha mãe?
— Que pergunta é essa?
— Só responda se sim ou não.
— Sim.
Uma corrida em disparada pelas ruas da cidade. Ainda correu atrás, não encontrou ninguém. Correr não era muito o seu forte. Pior ainda correr atrás de alguém.
— Sabe quantas vezes eu liguei pra você ontem?
— Eu já disse que perdi o celular. Eu não faço a mínima ideia.
— E o que é isso aí na sua mão?
— Uma mulher achou e me devolveu, mas alguém tirou a bateria.
— Sei.
— Ah, se você não acredita não posso fazer nada, é problema seu!
Nunca soube muito bem o motivo de ela ter simplesmente sumido assim. Só chegou em casa e não havia ninguém e assim foram se passando os dias, todo mundo de uma hora para outra foi sumindo. Além dela seus amigos também sumiram. Ela levara consigo os amigos que conheceu através dele. Nenhum era seu amigo de verdade, concluiu um dia com sua cachaça barata.
Passou certa vez por uma avenida e viu pixado “further back”. Adotou essa frase como sua, fazendo companhia ao live and let die. Odiava Beatles e, por conseguinte, Paul também. 
O estampido foi seco e atingiu na barriga. Quando sentiu, instantaneamente, levou as mãos ao sangue.
Havia saído de casa dizendo ir à procura dela e corria por um beco. Era madrugada. Sangue sintetizando álcool. Pela primeira vez corria atrás de alguém. Estava perdido, mas finalmente se encontrou.
As faces mudam, mas nada parece mudar a dor.
Ao amanhecer formigas por perto e insetos.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Javé Salva, ou 7 de Novembro

 Recebi isto por encomenda no fim da tarde, era uma despedida de algo:


A mistura de sofrimento com solidão é o que chamam de sofreguidão. Quis mel, quis um corpo, quis um beijo, quis alma, quis coisas demais e tive tudo isso. Nem sempre se sabe dar e dificilmente se sabe lidar com o que se recebe e de fato se tem, porque “o homem que diz dou não dá, porque quem quer mesmo não diz (...) porque ninguém dar quando quer”.
Amanhã, se eu estiver vivo peço que queime isto, mas que nunca esqueça. 
Encontro-me deitado no chão feito uma folha seca e acaba de entrar uma esperança pela janela. Verde, contrasta com o cinza do piso, com o branco da minha alma e com o negro do meu coração. Que observação mais piegas.
Tenho um filho, você não sabe. Mas agora fique sabendo, se chama Rafael; mas poderia se chamar Caio, como você gostaria.
Javé disse certa vez que o cinema é algo divertido, ver; como o toque na nuca e nos cabelos.
Se essa rua não fosse minha porque aqui moro, eu mandava explodir inteira, comigo dentro de casa, ajoelhado no canto do quarto. Nu, no chão frio de cerâmica. Banhado pelas mentiras engolidas à força.
Perto demais, eu não te amo mais. Porque você não quis acreditar em mim. Não se justifica quando nem mesmo o nome verdadeiro se falou. Mas o que importa? Somente imbecis sabiam, nenhum deles era amado. Não é tão fácil compreender. A mulher muitas vezes é isso mesmo e não é culpa não serem forjadas no coração da simplicidade, não é fácil de lidar.
Apenas uma noite. É verdade, mas doeu e ficou pra sempre. É sobre mágoa, sobre covardia, sobre peso de uma culpa partilhada, sobre a dor não diluída em dois, mas sim exponenciada.
Javé Salva, a cena mais triste do mundo no dia 7 de novembro.

Mais

"Mais que toda a perpétua e vívida bênção de amar, dada a uma alma que chora em alegria e redenção, é meu amor que arde em chama quando ouve o teu nome e ascende à imensidão quando toca a tua pele em minha, quando sente teus lábios. 
Que perdure por toda a existência o que amo em você, e possamos repartir toda a dor e a felicidade que é amar você, enquanto eu puder simbolizar o que poderia ser isso.
Te amo."

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Após o Momento II

— Nossa, quanto tempo! — disse, forçando um sorriso no canto direito da boca.
— Não seja bobo, nem faz tanto tempo assim. — disse, sorrindo de volta sem forçar.
Na mão direita o cigarro de sempre, “pelo menos não tá na boca”, pensou consigo.
O restante das pessoas que estavam sentadas ao redor antes de avistarem-lhes não se aproximaram, fingiram não se importar e viraram as costas. Ao longe, vez ou outra, observavam rapidamente.
Sem se levantar, estende os braços e recebe um abraço. Também sem se levantar, mas permanecendo imóvel, recebe um beijo suave. Em seguida um trago.
Fazia quase que exatos oito meses que não se viam. Após o momento, ao descer as escadas naquela tarde de domingo e ir embora, virando as costas para a porta, nunca mais procurou manter contato. O que aconteceu da mesma maneira da outra parte. Havia ficado um vazio, que emanava no assobio do que seria o amor sem tragédia, nem sequer pensava sobre o que proferia nos lábios. Pensamentos soltos.
— Você não ligou, nunca mais apareceu.
— Você também não.
Risadas que não tinham graça nenhuma, mas eram sonoras.
Aquele olhar que fingia se perder no horizonte, o que costumam chamar de blasé. Ridículo, não havia horizonte nenhum ali. Aqueles olhos falavam demais e fazia tal olhar porque queria esconder muitas coisas. Da outra parte, os olhos brilhavam sem nenhuma timidez, quase saltavam no seu corpo pequeno e magro. A boca semiaberta observava aquelas mão pequenas. Quem olhasse saberia que aquela boca desejava o toque suave daqueles dedos, o calor distante daquele corpo frágil.
— Mas, e então, vai fazer alguma coisa depois daqui?
— Eu não sei... mas não me interesso em saber. Quem sabe, se aparecer algo.
— Vamos sair daqui e ir lá pra casa. Podemos conversar melhor.
— Eu não tô a fim de conversar... mas eu vou.
A fingida indiferença já começava a incomodar, justamente porque era fingida e, mais que isso, óbvia. Já estava chegando a doer. Contudo, havia naqueles olhos certo peso que causava medo, mas que, também, causava vontade de beijar, fazer um carinho, envolver o pequeno corpo nos braços, o pequeno corpo que não largava o cigarro.
Não se despedem de ninguém.
Apanharam um táxi e seguiram em direção ao Bairro de Fátima. Acendeu um cigarro.
— Leva a mal não, mas você poderia apagar? Não gosto que fumem no meu táxi. — retrucou o taxista, um homem forte, feições rígidas, aparentava ter seus quarenta e tantos anos.
Abre a janela e joga fora o cigarro que cai em uma poça, apagando-se. Solta a última baforada ali mesmo enquanto olha pela janela a pouca vegetação da cidade e todos aqueles carros estacionados nas beiradas das ruas.
A mão encosta e segura forte. O olhar não desvia da janela. Era notória a disparidade da ternura do olhar feliz com o reencontro e do que simulava a indiferença, sendo que esse último mais parecia querer gritar sonoramente, chorar alto.
Não trocaram sequer uma palavra. Ao saltarem do táxi e aproximarem-se do portão do prédio uma rápida, mas terna, troca de beijos. Um gemido de saudades. Os olhares se pousaram rapidamente pela primeira vez a noite inteira, pela primeira vez depois de meses. A diferença de olhar dos dois era nítida. Ninguém poderia dizer o que de fato estavam desejando ali, mas ninguém, também, se interessava em saber.
Ao entrarem no apartamento viu alguns móveis trocados de lugar. Enquanto o outro lhe abraçava por trás e beijava ternamente sua nuca reparava nas coisas semelhantes pelo chão. Poderia jurar que era a segunda-feira daquele dia de sol em março. Acendeu um cigarro e fumou enquanto recebia as carícias e gemia devagar. Abria e fechava os olhos sofregamente em períodos lentos. A noite era fria e a meia luz era rasgada pelo calor das cinzas queimando. Quando o cigarro acaba os movimentos enfim ganham mais altivez.
— Eu não vou engolir, goza na minha cara.
E gozou, broxado. Gotas que escorriam do pau flácido e manchavam o lençol. Na expressão certa raiva que era respondida com o olhar de quem se pergunta “qual o problema com você?”.
— Você fez de propósito.
— Pensei que também gostasse das coisas pela metade.
— Eu não sei nem o que falar, só foi... inesperado.
— Relaxa, ainda temos tempo. O que são oito meses?
— Eu tô relaxado. Mais do que eu gostaria.
— Bom, isso não tem a ver comigo.
(...)
— Se serve de justificativa e se não se importa, o único gosto que eu quero na minha boca há tempos é o de Marlboro vermelho.
O amor e a tragédia. Quem falou em amor? Estamos falando de teatro e coisas pela metade que tem um fim. O tempo passou e ninguém morreu, e o silêncio continuou a gritar e ecoar através do mesmo tempo. A única coisa que apagou de verdade foi o cigarro, porque enfim as cinzas queimam sozinhas e lentas com o ar.
Naquela noite todos não só ejacularam como também gozaram. “Àquilo” ainda era uma incógnita, mas ninguém dormiu um minuto sequer. Conforme os raios de sol começavam a rasgar as frestas das cortinas e invadir o quarto a vontade de ficar aumentava.
— Geralmente eu me sinto solitário.
— Você não sabe do que tá falando.
— Dizer isso é muito cruel.
— Eu não retiro o que disse. — uma baforada.
— Bom, muitas vezes eu não tenho com quem conversar, parece que as pessoas somem.
— E o que você faz, então?
— Ah, ligo pra alguém, vou atrás de conversar.
— E as pessoas te atendem?
— Geralmente sim.
— Entendo... você é realmente muito ingênuo. Você não sabe do que fala.
— Me beija...
— Não, deixa eu terminar de falar. Na verdade, a solidão é procurar alguém e não ter nem a si mesmo pra conversar.
Silêncio. Olhares que não se cruzam. Cinzas que caem fora do cinzeiro.
— Agora acho que vou mesmo embora.
— Espera! Fica, a gente assiste um filme, tem comida.
— Não, eu realmente tenho que ir. Você ainda precisa aprender muitas coisas.
O pequeno corpo magrelo levanta e esgueira-se dentro das roupas recolhidas do chão.
— Quando vou te ver de novo?
— Eu não sei. Quem sabe? Talvez no dia em que você tiver solitário eu apareça aqui. Até lá, ninguém pode saber. — Droga, esqueci meu cigarro.
— Eu vou lá pegar pra você.
— Não precisa.
Naquele beijo havia um adeus. Mas não passava disso.

domingo, 2 de novembro de 2014

Canção Pra Te Matar



Quando você chegou encontrou a porta aberta
Abriu minha geladeira, ligou minha TV
Mas não foi na hora certa
Ocupou meu coração
Vasculhou minhas tristezas
Bagunçou a minha vida inteira
Isso não está certo...
Mas eu te amo
Quando dei por mim
Já estava tudo assim
Os meus amigos também eram seus
Os meus passos seguiam os teus
Vi sua escova de dentes junto à minha 
Não sabia mais nem onde era a minha cozinha
Não reconhecia o lixo do banheiro
Não me importava com suas calcinhas no chuveiro
Isso não está certo...
Mas eu te amo
Me esqueci de crescer
Me dei todo a você
Na ilusão da palavra amor, sem nem perceber
Sob a égide lírica da tua boca vermelha fiquei à mercê
Isso não está certo...
Mas eu te amo
E então você se foi
E eu virei um perdido
Levou tudo que eu tinha
Deixou só as baratas na cozinha
Mas, por favor, devolva os meus amigos...
E me dê de volta os meus livros
Os meus gritos, meus sonhos
Nossos filhos... que você abortou
O copo cheio de cerveja
A boca cheia de cigarros
A garganta com gosto de cachaça
Na foto ao lado da cama você sorria
Ah, eu não acho graça
Não, eu não achei graça
Porque isso não está certo
Mas eu te amo... como eu te amo
A barriga vazia, geladeira vazia
Na dispensa tudo podre, louça suja
E no forno um arroz de três dias
Só na cama tem folia
No meu quarto entra e sai gente estranha todo dia
Isso não está certo...
Porque eu te amo...
Tenho trinta e poucos anos...
Em que parte da vida esqueci dos meus planos?
Então volta
Traz de volta os teus defeitos
Diz que odeia esse sujeito
Quero saltar nos teus peitos
Vem com ele, eu aceito
Mas pelo amor de Deus aparece na minha porta...
Nem que seja morta
Isso não está certo...
Mas eu te amo

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Poeira

Eu sou o segredo dos solitários da noite
Aquele que tem olhos nublados
Pois daquele que vem sempre ao lado
Da escuridão do meio-dia do corpo
Que faz do inverno o sol profundo
Da solidão colhe e seme pés surrados 

O jogo perde o feitio:
O amiúde estraçalha o sono
O sorriso escarnece a morte
O deitar-se contempla a vida

Anoiteceu dentro de mim e eu vi as mesmas faces
Encontrei-me com a criatura do lado vermelho
Sortilégio foi o que nunca se rompeu em escárnio
Irrompe o som de um grito negro, sórdido!

Nuvem... anuviado!

Eu fui aquilo que os poetas ordinários sempre quiseram ter 
Almejado por todo aquele que habita o animal das ruas
Não há mapa que aponte o meu seio
Não há homem que ousou isto ser

E eu levo comigo as glórias escondidas
A derrocada de um lábio trêmulo
A utopia de uma lágrima sincera se quer
Se quer mesmo me ousar
Te trago meu mais puro símbolo extraviado:
Lábios! Lábios! Lábios!

domingo, 28 de setembro de 2014

Parece cocaína

Parece cocaína, mas é só tristeza. Na verdade não é nenhum dos dois. Gostou de saber que pessoas inesperadas se preocupam, mas a tempestade que se encerra em seu peito não cessa de jeito nenhum. O fez pesar os pensamentos de maneira desnecessária, inflamado de ciúmes, inflamado de sentimentos, inflamado de confusão, louco de medo, perdido na temida segurança de um beijo que faz gemer de saudade, de paixão, tesão e amor que não se perde nem se acaba, apesar da teimosia.
Quando fez amor não conseguiu olhar na cara, não conseguiu suportar olhos nos olhos diferentes, sôfregos, estranhos. Gozou dentro, de quatro. Introspectivo, não conseguia se erguer, somente após a cachoeira de palavras jorrar pôde enfim amar por um momento que infelizmente precisava acabar.
O que se seguia após era um encontro quebrado, por isso triste, sonolento. O gole da cerveja gelada e cara o fizeram animar-se.
— Deixa de ser alcoólatra, tem vergonha.
Não teve coragem de dizer para ninguém o que queria de verdade e isso lhe era uma coisa estranha: não ter coragem. Não tirava da cabeça a ideia corrosiva da mentira engolida. Quando fingiu acreditar foi o mesmo de quando Ismália enlouqueceu e agora essa tempestade.
— Deixa chover.
— Ai, meu deus. Isso me faz ter coragem pra deixar chover mesmo. Mas odeio me sentir vulnerável, você sabe.
Por dentro tudo dói, arde o peito, queima as entranhas. Arde o desejo, queima a língua com a garganta banhada pelo gozo quente e complacente, pois está muito cansado. Cansado do peso da cabeça, desse ano de 2014 de fins e recomeços e reencontros e rompimentos, essa confusão toda, as pessoas perguntando as mesmas coisas, dizendo as mesmas coisas e a teimosia negando-lhes a razão.


“Eu me sinto tão frio
Com vagabundas e gim
Essa bagunça em que nós estamos”


Passou o dia inteiro ouvindo vômitos enquanto permanecia sentado, no ar condicionado, comendo o que aparecia. Por que essas pessoas só sabem falar sobre esses mesmos assuntos já tão banais? Deveria se envolver ou simplesmente fingir que não se importa. Fingiu não se importar e olhou o teto. Para não dizer que não se implicava, analisou. Antes disso se encontrava em palavras macias de um olhar sincero que gostaria muito que se estendesse.
— Tu tava numa vibe muito teenager.
— Eu?! Como assim?!
(...)
— Ah, mas não, isso não tem nada a ver. Isso é o que aparece pra vocês porque é o mais fácil de ver, né. Mas não, nada a ver.
(...)
— Ficamos preocupados, todo mundo que leu, que viu aquilo no twitter.
— Ah, foi só uma experiência acho que necessária, mas nada a ver, não é minha vibe.
(...)
— Vocês foram as grandes mudanças na vida um do outro e se acontecesse seria massa.
(...)
— Sozinho não, né. — risos. — E o que o Anderson anda fazendo da vida além de promover os cabelos bonitos dele?
Porém, apesar de tudo


“I feel so cold
On hookers and gin
This mess we're in”


E a tempestade dentro de mim se demora em não passar, preciso chorar, nos seus braços, de preferência.

A sobriedade de uma lucidez não etílica, nem com o sistema nervoso central estimulado:

Irrita-me, me banha e me chama [e me beija], mas teima em procurar, nas minhas palavras motivos que justifiquem não mais querer viver, pois agora enxerga o mundo embaçado por uma redoma que apesar de necessária jamais funcionará conosco, pois o mesmo pensamento sempre retornará quase como um amor fati porque apesar de insistir numa aleatoriedade inventada eu vou te acompanhar, pequena, menina mulher da pele preta. Mesmo neste momento sentindo-me louco, quebrado, à beira de um grito alto demais para ser ouvido com toda essa bagunça em que nós estamos. Estou louco de ciúmes, estou louco de vontade de te morder com meu sorriso, de te bater com meus dentes, mas não quero machucar, é só a vontade de deixar marcas porque não suporto outros elogiando o sorriso que eu beijei e fotografei não só com as minhas retinas, que beijei e fotografei com o nosso amor em espaços tão caros a nós, que só nós entendemos, que só a nós deveria pertencer e referenciar, mas que vem à público sem os devidos créditos, nem mesmo o mínimo senso a não ser o meu. Eles não fazem ideia e você faz questão de lhes salientar que não precisam. E se a teimosia da insegurança que desemboca na loucura de fazer tudo que se pode pela frente reina sobre o imperativo apego ao amor que sim, é infindo, é porque você jamais pisará no passado e cairá no futuro pelo simples fato de insistir em negar o presente, que jamais será passado, nem mesmo na teimosia de invenções e mentiras protecionistas que não cabem sequer nas fantasias superficiais de relações humanas deveras complicadas.
Cala essa boca, para de falar besteira e rir dessas besteiras, se envolver com besteiras, joga essas pessoas fora que só te dão trabalho desnecessário e me beija, pois os meus braços, como bem sabe, sempre será o acolhimento de paz e tranquilidade, onde seus demônios vão embora e são exorcizados enquanto você se contorce com olhos virados para o além enquanto estou dentro de você, profundo e quente, como o nosso amor indelével.




sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Lua em Peixes, ou Sobre a Saudade

“Nessa cama tinha uma vó”. Pensa o menino enquanto voltava do banheiro em direção à sala para continuar a ler seus gibis e passou em frente ao quarto fechado, mas limpo e cheiroso, arrumado. Certa vez entrara enquanto a mãe arrumava o quarto já vazio. Criança, não fazia a mínima ideia do que aquilo representava e ficava até chateado, pois ele mesmo não tinha um quarto só para si! Por que diabos haveria daquele cômodo ficar ali, vazio?!
Ia à escola e em sua lancheira não havia mais suco de maçã. No lugar uma maçã inteira e um suco industrializado de caixinha sabor uva. Ele nem gostava mesmo do suco feito pela avó.
— Hoje eu acordei e fui fazer tricô.
— A bença, vó.
— Deus te abençoe, meu filho.
Sorriso.
— Hoje eu acordei e fui fazer tricô.
— A bença, vó.
— Deus te abençoe, meu filho.
Nenhum tricô.
O tempo parecia brincar de alguma coisa, quase uma entidade. Isso tudo dava àquele momento todo um toque mágico e não era uma velha solitária, pois sempre rodeada de filhos e filhas, netos e netas, gatos e gatas, os quais repetiam as mesmas palavras, mas não o mesmo pensamento, salvo o “eu te amo” que ninguém ousava dizer naquela casa.
Naquele telhado tinha um gato e naquela parede tinha uma aranha. Naquela panela tinha feijão. Naquele prato tinha baião com banana em rodelas e naquela mesa tinha uma família. No café depois do almoço havia um pai, os pés ainda sujos do roçado, botas grandes, bigode grande, cabelo curto. Ao lado da cadeira de balanço havia uma mãe, cansada após ter lavado a louça. No cheiro de gordura havia uma mão e nessa mão havia unhas quebradas. Nos ossos e restos de comida havia cães. Um pouco distante, mas também no mesmo lugar, havia gatos. Havia porcos, havia galinhas e um galo, havia patos, havia macaquinhos nas árvores, havia gaiola onde havia pássaros. Havia muitas coisas e faltava pouco. Fora a velha que não se apercebera de muita coisa ali, nem dela mesma. Era estranho porque era como se não houvesse ela, apesar de que naquela casa nada era mais presente do que seu cabelo branco e o seu cheiro de urina.
Uma responsabilidade compartilhada por uma certa dor. O menino certa vez pensou “ela devia morrer” e ela morreu. Mais tarde pensou nisso de novo e quis se culpar, até chorou, mas uma menina lhe beijava o rosto, não pôde chorar direito porque se lembrara de que vindo daquela casa ninguém diz “eu te amo”. Nas mãos havia corpo. No sexo havia amor. Sim, havia. Pois havia muitas coisas e faltava pouco. Fora a velha morta que agora sim é que não se apercebia de absolutamente nada, quem sabe, aliás? Apesar de o seu quarto vazio ser o cômodo mais cheio da casa. Sua cama com cheiro de urina, suas sandálias ao pé do colchão, ao lado do penico que vez ou outra fazia barulho de madrugada, mais barulho que os pais do menino faziam à noite quando ele, ainda acordado, ouvia e às vezes até via.
Havia uma cidade naquelas pessoas e havia ruas naquelas carroças. Havia carroças naqueles animais e havia crianças naquelas professoras do jardim. Havia praça naquela igreja. Foi lá que a velha iniciou seus amores, assim nasceu um pai, que havia no roçado e onde havia uma mulher. Só assim pôde haver um menino naquela mãe e que odiava aquele quarto, que não pôde chorar mais tarde porque a amada apaixonada não deixou, tapando-lhe a boca com seus beijos, enxugando com ternura os seus olhos e molhando com sua língua o espaço antes ocupado pelas lágrimas.
Da igreja, do útero, da vagem de feijão debulhada em cima da mesa até o café servido com cuscuz. Do cuscuz com café, do fumo ao fim da tarde, do silêncio quando batem as seis horas até o quarto vazio impregnado com o cheiro da urina da velha. Naquela avó havia um quarto.
O menino já homem chorou quando sintonizou um rádio velho de pilha, o qual na antena havia um pai, que, por sua vez, no pai havia um bigode e botas grandes. Seus filhos e a mulher assustados, afinal quem vem daquela família onde havia uma casa não diz “eu te amo”.

Quando batem as seis horas
de joelhos sobre o chão
O sertanejo reza a sua oração
Ave Maria
Mãe de Deus Jesus
Nos dê força e coragem
Pra carregar a nossa cruz
Nesta hora bendita e santa
Devemos suplicar
A Virgem Imaculada
Os enfermos vir curar
Ave Maria
Mãe de Deus Jesus
Nos dê força e coragem
Pra carregar a nossa cruz

Naquela canção havia um pai fumando. Naquele pai com seu cigarro de fumo havia um abraço. Naquele abraço havia um poema. Naquela poema havia Gonzagão. E havia uma mulher. Uma mulher que faz café e limpa urina, faz baião e cuscuz, corta banana em rodela e debulha vagem madura. Naquelas panelas havia afeto.
O menino já muito tarde, muito tempo depois, viaja. Naquela viagem havia desejo. Naquele carro havia uma família. Naquela família havia palavra e naquela palavra havia silêncio.
De volta a casa havia ainda um quarto. Naquele mato havia um sítio. Naquele sítio havia uma cerca e um homem de olhos marejados, barba feita e roupa formal. Naquele chão havia um sapato engraxado. Naquela graxa havia suor e moedas. Naquelas moedas havia fome. Naquela fome havia outro homem, em algum lugar.
“Naquela cama tinha uma vó”. Hoje nessa cama há saudade. Nessa saudade há um peito. Nesse peito há um “eu te amo”. Nesse eu te amo há uma cisão, pois naquele momento o menino decide ficar. Não lembra o nome daquela mulher ao seu lado nem daquelas duas crianças se entreolhando assustadas. Ele tem cheiro de urina.
— Já chega das suas doidices, eu tô indo embora.
— Por favor, leve o carro e todo o meu dinheiro.
Havia adeus naquele amor.
Havia beijo naquela paixão.
Naquela cama onde tinha uma vó agora só há saudade.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

A gente ainda nem começou

Estava lendo o jornal no bar, tomando um café e comendo um pão com margarina. As casas da rua começaram a ter grades nas janelas, mas o bar continuava sem grade nenhuma. As portas abertas, a sinuca na calçada, um rádio baixinho e ele ali lendo o jornal. Sem camisa, a barriga protuberante nem chamava atenção, barba por fazer, respiração arquejante.
Conferia a coluna de esportes, os times locais iam mal nos campeonatos nacionais e o Ferroviário havia perdido novamente, em casa. O ar do Jardim Guanabara continuava o mesmo, mas as notícias nos jornais eram ruins hoje, ontem foram também e ele sabia que amanhã seriam piores, depois de amanhã também e assim por diante.
Passa o garoto gordinho de bicicleta, filho da vizinha chata, e ele grita algum insulto de modo a brincar. O menino devolve:
— Vai se lascar.
Ri bastante.
— Vai ali comprar a mistura pra tia. Meio frango, uma cebola, um tomate e cheiro verde, que acabou.
— Cadê o dinheiro?
— Passa no bar e pede ao teu tio.
A postura do tio sentado assistindo televisão era de certa maneira imperiosa, apesar da cena esdrúxula de um homem gordo de meia idade esparramado em uma espreguiçadeira com o ambiente repleto de engradados de cerveja e garrafas de coca cola.
Enquanto seu tio procurava o dinheiro pelos bolsos olhou para o jornal em cima do engradado e leu rapidamente algumas manchetes: “jovem é assassinado”, “acidente de trânsito deixa mortos”, “escândalo de corrupção”. Lembrou-se de uma vez estar cantando Cachorro Urubu “todo jornal que eu leio me diz que a gente já era, que já não é mais primavera” e de repente levantar o olhar e vê seu mesmo tio com ar de orgulhoso na porta o vendo cantar, sentiu vergonha, sentiu afeto.
Em casa, a mulher prepara o almoço enquanto as crianças assistem desenhos animados na TV. O cheiro do tempero no feijão e do arroz sendo refogado se espalha pela casa. No rádio toca um cd da Ivete Sangalo enquanto ela canta todas as músicas sem errar nenhum verso.
Era um casal jovem, com suas cerca de três décadas cada, quase quarenta anos e uns vinte de casados.
Casa limpa, frutas sobre a mesa.
— Vai tomar banho pra ir pra escola!
— Vou já, mãe. Deixa só terminar os páurenjer.
— Vai logo, menino!
— Peraí, mãe.
Almoço servido, banana cortada em rodelas misturada com arroz e feijão no prato. Farinha, pimenta, azeite, salada de alface, frango cozido, suco de caju. Mesa farta.
Crianças na escola e ninguém para atender após o almoço. Melhor fechar o bar um tempo. O sobrinho fica em casa, procura por revistas, quer ler algo. Os programas da televisão nesse horário são bestas e não tem nenhum DVD que não seja arranhado. Em cima estão seus tios tirando um cochilo após comer. Sobe as escadas sem se preocupar em não fazer barulho. A casa era projetada com um só corredor para todos os cômodos e ao pôr os pés depois da cozinha, chegando ao quarto, a tia de pernas abertas com aquele homem em cima dela enquanto gemia “ai, nego, ai, nego”. Dá meia volta e desce em silêncio. Se deita no sofá e assiste o Video Show, na Globo. Procura moedas pelo sofá e encontra quase cinco reais.
Na locadora de video game enquanto faz transações e muda as táticas de seu time no Winning Eleven se recorda da cena, pensa nas vezes em que viu a tia nua, peitos bonitos. Sentiu vontade de se masturbar. Guardou a hora e foi à lan house, jogou Counter Strike, perdeu na maioria das partidas. Olhou um site pornô, mas algum receio sem motivo aparente o fez fechar e ir para casa.
— Onde tu andava, menino?
— Na casa da tia.
— Almoçou?
— Almocei sim.
Na TV passava algum programa de auditório da tarde, sua mãe fazia crochê. Sentiu vontade de estar na escola, não havia aula hoje, queria falar com alguém sobre o que viu, mas não havia ninguém. Permaneceu com isso na mente.
À noite se masturbou pensando nos peitos da tia e em seu gemido, abriu o velcro do calção com cuidado para não acordar a mãe. Obviamente ela estava acordada, mas fingia que nada acontecia. Nem sequer ejaculava ainda.
Sábado, como quem tem a certeza do que faz, saiu de casa levando sua coleção de tampas de garrafa mais uma vez em direção à casa da tia. Ao passar pelo bar lotado do tio que ficava no caminho vai pedir a bênção, chegando lá encontra o portão aberto, mas não a encontra em casa. A TV estava ligada e ninguém assistindo, o ventilador na sala também ligado. Sobe as escadas fazendo barulho, como sempre, e ao pôr os pés no quarto vê o primo mais novo que ele por trás de um dos meninos da vizinhança deitado de bruços sobre a cama. Os dois se assustam. Ele ao invés de simplesmente voltar em silêncio como fez da outra vez permaneceu lá sem saber o que fazer.
— Vem meter nele também.
— Não.
— Então fica olhando pra ver se vem gente.
E lá ficou, alguma coisa o fez ficar por lá, mas alguma coisa também o causava ojeriza.
— Não conta pra ninguém.
— Beleza.
Quando descem sua tia olha estranho, mas finge dar de ombros. As tampinhas de garrafa em seu bolso fazem barulho.
— Vamo pedir dinheiro ao pai pra ir jogar.
— Bora.
O tio bêbado lhes faz um cafuné, diz algumas brincadeiras com os dois e os bêbados por lá riem alto.
— Vamo jogar jogo de carro, de dois.
— Vamo.
De volta em casa brinca com suas tampinhas. Na sua cabeça a imagem de pessoas em cima umas das outras ferve, tenta não pensar, mas a imagem permanece e na noite de sábado quis dormir abraçado com sua mãe na cama. Estava excitado, ela pareceu não se importar.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Filhas II

"De quem é Alice? 
Alice não se encontra mais aqui, está sentada no banheiro olhando os primeiros pêlos. Seus olhos grandes e vermelhos refletem o espelho com desdém. Alice não mora mais ali, mora dentro de uma gaiola que balança com o vento. Alice tem poucos anos, mas já deixa um cheiro de morte nas suas lágrimas. Gosta de sentir seu corpo em gótico mundo, isso lhe deixa mais atraente. Não para quem. Alice tem dois ursos no quarto, um com os olhos rasgados se chama Dylan, outro é pintado de canetinha vermelha, se chama Dora. Ela sempre os chuta sem notar. Joga-os para todos os lados sem perceber. Mas durante noites chuvosas ela os abraça bem forte. Noutro dia os ursos não estão mais lá. Tem medo da morte, mas principalmente a morte do pai. Embora o pai esbanje saúde, chora toda vez que essa ideia passa por ela. Desde que viu pela primeira vez um pornô e um homem ejaculava em cima de uma mulher dizia-se que nunca iria amar pessoas. Pois homens e mulheres remetia-lhe um nojo irreversível. Se tivesse um meio de escapar do mundo, se tivesse um meio de ser outro, de ser outro ser.
Alice não mora mais aqui, mas é esse seu endereço."

J.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Se você não é Fernando Pessoa, não escreva!

Anticristo disse certa vez que se escreve com sangue, escrever pode não ser complicado, mas é difícil. Porém, quando se chuta as saudades há sempre um lunático chamando para pisar na grama e isso nunca diz respeito somente a você. Ele fica lá na sombra, no lado escuro por onde andam os cavaleiros de Cidônia.
Dessa maneira, se você não é Fernando Pessoa, não escreva. Fernando Pessoa nunca escreveu, senão o mar, molhado com o sangue dos leprosos e imorais em stultifera navis: é doce morrer no mar; não, Caymmi, não é.
Álvaro de Campos também estava sorrindo quando leu isso pela primeira vez, mesmo sem saber quem era o tal de Pessoa que fez Belchior de olhos marejados. E seu riso era o mesmo do Syd when the madcap laughs, bem como do Ahab, louco, e bem como de Jonas: é um sorriso que mostra todos os dentes, assim que nem o meu, é um sorriso que morde.
Sob a égide da Lua ela não quis olhar o lado negro para onde queria levá-la, permanecendo sob a claridade roubada do Sol, mas coberta pela energia do corpo. E isso foi o que os alquimistas encontraram quando chegaram: it’s all over now, baby blue.
Mas era mentira, não havia acabado nada porque a saudade habita em muitos lugares e os sorrisos beijados parafraseiam que a “a saudade é o tudo que de repente virou nada ou é o nada que insiste em pensar ser tudo”, pois o nada insiste, insiste em existir. Ninguém ousa calar a boca com um beijo, pois nem mesmo os beijos lhes taparão a boca… em linha reta enquanto paira Für Elise ao redor com os pássaros.
Os sabores dos olhares, o cheiro das carícias, a dor póstuma dos afagos… nada disso é vício nem aventura, são reminiscências do que jamais se acabará, nem mesmo por teimosia ou insegurança.
E é por isso que se você não é Fernando Pessoa, não escreva. O sangue sifilítico de Nietzsche escrito em cartas sujas jamais justificará o cigarro com marcas de batom, nem as leituras e citações que rasgam as madrugadas sonolentas na hora mais escura da noite. Mesmo que, preta, teima em dormir para não ver a aurora, sob efeito da Lua, sob efeito do medo do perdão, sob o efeito de Áries.
O sangue escrito não justifica sequer o beijo no rosto, o espelho e muito menos o câncer e a depressão porque todos estão fartos de semideuses, não quero cigarros desta tabacaria!

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O Relógio Ficou Sobre a Mesa

O relógio ficou sobre a mesa. Lá haviam copos vazios, sujeira, comida e corpos a falar. Lá ficou também a vergonha e foi embora o coração. Só havia lugar para a cegueira, pois a frieza daquela noite fora a última. Do jeito que estava não dava mais para continuar, se sentia tão fraca, abatida, gelada... mas haviam olhos selvagens à espreita e quando estes a fitaram se sentiu quente, sóbria, puta... E se sentindo puta esvaziou o copo com destilado, tomou a bolsa com maquiagem, tirou o relógio e o pôs sobre a mesa. Sem nada dizer, levantou-se como quem vai ao banheiro, sem olhar na cara dele: o prenúncio que palavra nenhuma sairia novamente daqueles lábios que agora estavam vermelhos. Atrás dela foi a outra, na mesma direção.
O corpo dele permaneceu lá falando, bebendo fermentados, gargalhando alto e arrotando. Percebeu que ela saiu, mas não se importou. Encheu novamente o copo de cerveja deixando uma boa quantidade de espuma e tomou dois goles. Acendeu um cigarro com o isqueiro ao seu lado na mesa, deu um trago e em seguida fez uma piada fazendo todos ao redor rirem. Sentiu-se bem. Olhou as horas no relógio dela e dessa vez ficou apenas calado, não ouvia o que os outros estavam dizendo, mas não sabia exatamente o que estava fazendo quieto e absorto.
As coisas aqui parecem estar acontecendo e mudando rápido demais.
Olhando-se no espelho ela viu olhos diferentes, que tinham até cores. A maquiagem retocada, o pensamento de que não precisariam mais suportar e fingir que não sofrem, um sorriso tímido no canto direito da boca. Baixou a cabeça e quando levantou novamente se olhou no espelho e estava chorando. 
Maquiagem borrada.
Sentada no vaso tampado com a porta do cubículo entreaberta ela dobrou as pernas e chorou baixo. Manchou o pulso com batom vermelho. Sentia-se culpada, culpabilizada, não lhe entrava na cabeça que esse assunto era superestimado, pois se importava muito com isso, lhe doía muito para não se importar; apesar de fingir que não dava a mínima a fim de parecer emocionalmente melhor aos outros fosse habitual.
A que vinha atrás entrou e deu de ombros ao passar por ela, sua urina quebrou o silêncio do ambiente. Do boxe ao lado ouviu o barulho da mulher se enxugando e pensou se seria muito rude pedir para conversar, decidiu que só falaria se ela puxasse conversa e lá permaneceu imóvel, mas irrequieta por dentro. 
Não aguentou e ao vê-la passando levantou-se em direção à porta. A outra se olhava no espelho, cutucava a sobrancelha.
— A porta está trancada.
— Ah, oi... Sim, mas que tem?
— Continuará trancada.
Olhar safado, sorriso de canto.

Ele continuou a olhar o relógio, dessa vez estava contando o tempo. Ela estava demorando. Nenhuma mulher na mesa e as risadas estavam mais altas. Queria rir, mas tinha preguiça. Só conseguia pensar se aconteceria mais uma vez, mas quem era ele para reclamar?

Não foi só o pulso que ficou manchado de batom e nenhuma das duas fez questão de limpar nada. Ela voltou para buscar o relógio, mas ao ver a silhueta do homem voltou atrás e decidiu deixar lá mesmo.
— Que horas são?
— Não interessa.
— Mas eu quero saber.
— Não vou dizer. Me dá teu celular.
Foram para casa e enquanto transavam a mulher, com dois dedos em sua boceta e a boca perto do ouvido enquanto lambia o pescoço:
— Me chama com o nome dele.
Ela estranhou e por um momento de susto quase se desconecta do que estava sentindo, porém o seu tesão volta do lapso muito mais intenso, seu corpo vermelho e quente se contorce.
— Você já fudeu com ele?
— Já.
— Foi gostoso?
— Muito.
— Você quer o pau dele?
Silêncio e gemidos.
— Fala, sua puta.
— Quero.
— Aonde?
— Em você...
— Em mim? Você quer que ele me coma também?
— Uhum...
— Em mim aonde? Fala aqui pra mim...
Ela se vira um pouco para beijar-lhe a boca:
— No seu cuzinho... enquanto eu chupo sua boceta... chupo o saco dele, como o cuzinho dele...

— Não tinha margarina suficiente, usei óleo, espero que não se importe.
— Tudo bem.
Ela se aproxima e dá um abraço por trás em sua namorada que toma uma xícara de chá.
— Tá bom, agora pode me soltar.
— O que houve?
— Nada. Só come isso aí, é a última vez que faço café pra você. Quando você terminar de comer quero que vá embora daqui.
— Beleza.
Ela comeu, estava com fome. Odiava o sabor de ovos fritos com óleo, mas dessa vez nem se importou. Ela dar de ombros à situação não causou surpresa a nenhuma das duas.
Saiu sem tomar banho, não queria usar a água dela.
— Você tá esquecendo isso ali, leva essa porcaria também. – disse apontando para uma miniatura do John Lennon ao lado da televisão.
— Ah, certo.
Foi para a casa de um amigo, mas não quis falar sobre o assunto. O barulho do bebê chorando à noite não lhe deixava dormir, o ambiente de casamento recente, aquele cheiro de casal no ar... levantou-se da cama e se sentou no chão, enfim chorou, seu choro era baixo e fazia seu peito doer muito. Havia parado de fumar, mas queria um cigarro. Saiu do apartamento novo e foi para a varanda, adormeceu com o nascer do sol, quando o primeiro raio lhe tocou a face molhada. Acordou com o chamado do amigo que parecia preocupado, mas por lhe conhecer não perguntou nada, sabia que ficava muito irritada que perguntassem como estava se sentindo.
Odiava o sabor de ovos fritos com óleo e dessa vez quis cuspir. O café estava fraco. E o sorriso da mulher de seu amigo, a qual nem lembrava o nome, era branco demais, doía na vista. E seus dentes lívidos teimavam em aparecer, não paravam quietos dentro daquela boca. 
Era o seu único amigo, o qual insistiu em permanecer com ela que tinha o incrível dom de afastar todas as pessoas. 
Achava bebês feios e o filho de seu amigo, em especial, era horroroso. 
— Eu vou embora.
— Mas você não vai ficar para almoçar?
— Não. Você pode me pagar aqueles vinte reais?
— Claro, toma aqui.

Saiu e tomou rumo para a casa dele. Será que ele guardou o seu relógio? Percebeu que não fazia a mínima ideia de que horas eram e todos os relógios de rua do Centro da cidade haviam sumido. O desvio que fez pela praça só serviu para aumentar o tempo de sua viagem, aqueles pombos fediam e os velhos eram feios. As pessoas que passavam suavam e cheiravam mal, apressadas. Ela caminhou lentamente e decidiu pegar um táxi, a corrida dali até a casa dele deveria dar uns vinte reais. À medida que se aproximava da residência universitária ia sentindo um torpor esquisito e seu sexo pulsava lentamente com o calor na espinha. Sua mochila estava suja.
Chegando lá, sentiu-se puta mais uma vez, bateu na porta e ninguém atendia. Um vizinho aparece:
— Olha, acho que ele viajou. Tá tendo um encontro de Geografia em Belo Horizonte, o ônibus saiu hoje e ele foi, eu acho, sei lá.
— Ah, boto fé. Você tem cigarro aí?
— Não, eu não fumo.
— Ah, pode crer.
Lembrou de seu pai:
— “Se você voltar aqui eu juro que mato você, nunca mais apareça na minha frente. Só quero saber de você se for pra receber a notícia que você está enfim morta. Agora vá embora daqui.”
Nem sabia quantas vezes lhe mandaram ir embora. Afinal era ela que afastava as pessoas ou as pessoas que lhe afastavam a mandando ir embora, sair de perto?  Pôs-se a perguntar.
Sentiu falta do seu relógio para saber que horas eram. Sentiu-se livre, leve, excitada, mas sentia-se bem?
Entrou novamente em um taxi, não tinha dinheiro.
— Vai pra onde?
— Me leva pra onde você quiser.
— Saia.


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

As Horas I







Pois que os badalos me temem
porque as horas são tão largas.
E a maravilha que me acerta
se dissolve nos ponteiros 
enquanto com o tempo...
flerta.








sábado, 23 de agosto de 2014

Homem animal

— O que cê tá fazendo, Wolf?
— Esterilizando.

Respondeu o homem grande, branco, de barbas longas e tatuagens enquanto derramava cachaça sobre uma cadeira dessas de universidade. A garota parecia demonstrar, em seu tom de voz, incômodo com os homens ao seu redor e com o que estavam fazendo. Todos estavam bêbados e ela não, era também a única mulher. Talvez por isso estivesse parecendo tão sensual em sua pele branca e cabelos negros em sintonia com os seus seios médios que balançavam enquanto caminhava.
No dia acontecia um encontro nacional de estudantes de História. Por todos os lados pessoas em grupos e barracas. O ambiente estava ótimo, cheiro de maconha. Sobretudo para o lobo, que caminhava sozinho, louco para rasgar qualquer coisa, louco para tirar a roupa.
Ao fundo tocava uma música esquisita e absurdamente excitante, fiquei ligado de súbito enquanto a vocalista gemia sensualmente os versos:

“Au Au Au Au
Você lambendo o meu corpo
É meu homem animal”

— Vou colar ali.
Quando olhei foram convidativos, levantaram um copo e disseram algo que não ouvi muito bem, pois estava concentrado demais no semblante da mulher que dizia “quero ir embora, alguém me tira daqui, pode até ser você, qualquer um”. Obviamente, o lobo me fez imaginá-la nua. A fantasia é incontrolável, e justamente por isso é tão prazerosa, animalesca.
Porém, titubeei no mesmo momento e desviei o olhar para frente mais uma vez, na direção em que caminhava, que já era traçada. Não estava muito a fim de surpresas nem incertezas.
Ali ao redor tantos animais e corpos que falam, um tom de voz qualquer já é o suficiente para se entregarem. Afinal, eu não quero você, só o seu semblante, o seu descontentamento ao falar. Lamber o seu corpo, lamber um corpo, uma presa dissimuladamente difícil, mas que se entrega, adoro.
Nos últimos dias tudo na minha mente gira em torno de caninos e tenho me comportado como um há um tempo: mordo fácil, não largo o osso, sem dono, urinando onde acho que é de minha posse, onde acho que quero que seja meu, chamegando um e outro, e quando trepo com as cadelas, da rua ou de casa, não quero tirar de dentro depois de gozar.
Ficar grudado não em uma mulher, mas especificamente em uma boceta, tem sido quase que um hobby, um hobby doentio e infantil eu diria. Entretanto, as bocas e as línguas tem despertado mais o meu interesse e tenho me comportado nas últimas semanas como Wolf, esterilizando cadeiras com cachaça, desperdiçando a embriaguez em minha própria casa, onde me sentaria e sento. É quase que cuspir no prato que comeu e lambê-lo depois, usar a dor como arte e espetáculo de histeria, completamente superficial, mas não é, pois é completamente diferente, é o contrário!

Do lobo e do homem que só surgem com a lua como amigos de angústia, amigos da angústia, dignos de desprezo. Sendo a alcateia ou os lobos solitários nas montanhas geladas da Noruega, todos dignos de desprezo. Simplesmente pelo motivo de não se importarem com nada e ao mesmo tempo se darem demais. A demasia de solidão: felizes, só querem comer e dormir, por isso caçam de vez em quando. Sua felicidade incomoda, então a minha.
Wolf estava certo e a errada era ela por não estar bêbada.



sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Der Steppenwolf

Jamais ousarei tocar em você, lobo. 

Algumas pessoas nunca mudam e isso sempre acontece, da mesma maneira. É sempre tudo igual, “le temps detruit tout”... Eram sete ao todo. Sete lobos em minha janela e sete beijos no pescoço dela(s), irresistíveis, irreversíveis...

A omissão para proteger as almas é o novo hobby daquelas que me circundam, de Yoko Ono à índia irritantemente conhecida, cujas ambas os familiares vem da mesma terra de mato queimado.

Se algum dia eu faltar com o respeito saberei exatamente onde devo chegar e não parece um lugar tão ruim. Se eu uivar alto demais à noite talvez acorde toda a vizinhança e os corvos então adentrem a minha morada. Mas se eu ficar sem silêncio à espreita, na estepe ou nos galhos, provocarei medo e essa não é a intenção.

Doravante o que se encerra em meu peito é um allegretto, é um amor a conta gotas, é um sussurro mudo que arde inconsequentemente.

Inefável? Inefável é o que o lobo faz no pescoço dela(s), rasga tudo! Não sobra carne sobre qualquer osso, só fica a saliva que envenena, corrói a alma.

Inconstante, o lobo desfila e come a própria carne antes que vire carniça, vomita tudo no pescoço dela(s), é insustentável.

Em sua boca há sangue, saliva, fluido vaginal e esperma; há, sobretudo, medo. 
Há doença, há prurido, há tesão.

Na lágrima quente vai embora todo o ideal de casal que é reposta com vinho seco, da parte delas com atividade e conversas em redes sociais, mas com uma identidade torta, torta como o lobo certo. Ah, a contemporaneidade! É muito pelo contrário, não cabe nada no que é pós moderno. Só cabe o que é, o que foi, o que vai ser, mas não cabe.

O lobo desfila, caminhando com os espíritos do vale dos suicidas em um monte qualquer da República Tcheca, em Praga, e canta em sua língua: Manche Menschen ändern sich nie.

Farto de beijos rápidos, só quer comer.


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Você comeu a minha paz

Quando eu tornar a ver a luz do dia 
o incógnito crepúsculo que se deitou sobre mim 
já terá ido embora. 

Pois que com horas tão largas 
nada que se coloca no silêncio inerte 
de um coração rompido 
faz deitar tranquilidade alguma. 
Neste caso, a solidão não passa de desespero
pois a companhia é injuriante. 

Apesar de tudo
em mim ainda bate um coração
dentro de um murcho peito
onde não cabe mais nada.
E as setas que voam ao meio dia 
se demoram mais que o necessário

Você comeu a minha paz,
mas regurgitou em mim o amor.
Lançou sobre mim toda ansiedade,
vomitou em minhas angústias:

Todas as suas falhas
Todas as suas faltas
Todas as suas falas
Toda a sua indiferença falsa...

terça-feira, 12 de agosto de 2014

(Re)encontro(s)

O que vai embora
Sem vergonha, medo e remorso
Jamais se encherá
Do que foi outrora

Quando se pisa no passado
E cai no futuro
Fica junto uma saudade
Que leva longe um pecado

Fica sempre no ouvido
Babado, molhado, lambido
O som abafado de um gozo
O inquietante odor de um gemido

E nas virilhas ensopadas de luxúria
Ainda restam as marcas das mordidas
Ainda resta o cheiro de saliva
Exceto o beijo que a gente se priva

E pela porta deixada aberta 
A lua entra e faz morada
O vento sopra e beija as faces
E a cama nunca é deserta

Nas promessas descumpridas
O amor esmorece
E a paixão escurece
Em lembranças diluídas

Mas de tudo fica o fogo
Fica o torpor de um desejo constante
Inebriado no meu pau gozado de saliva
Latejando em seu sexo pulsante

No mais, estou indo embora
Já passou meu carnaval
Na quarta-feira de cinzas eu morri
Com a chama que arde em meu peito agora

No mais, estou indo embora
Fica em nós a marca de saliva
A marca de um amor interrompido
A marcar que nunca se enche de outrora

E por fim, fica o beijo
Fica a culpa e a incerteza 
Mas sobretudo a clareza
De que nada além do amor vale tão a pena

E é por isso que quando se encontra
Se sente orgulho do que foi
Se sente orgulho do que é
Se sabe a hora de abraçar
Se sabe a hora de beijar
Para celebrar o fim de um encontro

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Onze

Foram onze badaladas e restou apenas uma para se fechar um ciclo, que como tal continuaria andando em círculos. No meio da roda ela para e dança e consegue o que deseja: que todos a olhem. Enquanto Britney Spears geme I’m Slave 4 U ela dança, as pessoas olham, mas só quer chamar a minha atenção. 
No meio da multidão estou em pé, ali por perto te olhando disfarçadamente e fingindo indiferença. Você se aproxima e quando te olho seu corpo treme todo, beija minha boca de leve ao lado e sussurra enquanto mexe devagar com as mãos em minha cintura “I'm a slave for you... Like that... Now wacth me...” e sai, chama outro cara pra dançar. Me limito a dar um trago.
Na verdade, isso tudo não tem nada a ver: hoje é dia onze e é por isso que escrevo.

domingo, 10 de agosto de 2014

O universo não é por minha culpa

Foi uma noite ruim, pois não tive nenhum pesadelo. Os sonhos foram ótimos, mas eram sempre os mesmos e sempre com você e isso passou a incomodar. Por isso a noite foi horrível. Enquanto eu batia na mesma tecla o mundo insistia em não acabar e isso foi a melhor coisa que aconteceu na história do universo: um prazer superestimado, uma masturbação intelectual, o gozo.
Estou jogando o jogo sabendo que a felicidade esquenta e queima, mas a tristeza arde na pele e ainda por cima deixa a cicatriz. Entretanto, por mais obtuso que eu queira ser, a mancha de alegria deixada por você em meu corpo arde mais do que qualquer tristeza desse mundo.
Em um mesmo dia beijei você em sonho e  escondido por algum lugar dessa cidade onde nunca havíamos ido antes. Os estranhos nos viam e achavam que éramos um casal, afinal somos um casal, mas então por que nos escondíamos? Nos escondíamos dos olhares conhecidos e apesar de tudo estava achando a situação divertida, embora perigosa, pois os conhecidos passavam por todos os lados. De fato, nos machucamos com tudo isso e não foi pouco, só tirei o gosto dos seus lábios beijando outra mulher, bebendo cerveja, vinho, vômito, fumando cigarros e com o sabor inconstante de fluidos de mulheres estranhas. Isso sim cabe no universo.
Em um mesmo dia beijei você em pensamento e logo após em minha cama. Fiz morada entre suas pernas e você gemia alto demais. Apesar disso fiz questão de não calar a sua boca com um beijo e sim com um tapa, um movimento brusco onde quase quebrei seu corpo frágil e quando abrimos os olhos fomos capazes de enfim conversar. Hoje fazemos questão de dizer que isso não foi nada, mas não foi. É sobremaneira muita coisa, é coisa demais.
Em um dia quis lhe beijar e você deixou, mas ao ter que mexer com a minha cabeça até você que esperava por mim bem perto preferi apenas sorrir e te ver sem graça enquanto eu te elogiava com meus olhos. Seu sorriso tímido é lindo. E beijá-la significaria nos apaixonarmos e isso para mim não mais.
Eu sou incrível quando estou feliz e quando estou triste tudo vai à merda porque faço questão que seja assim. 
E se eu chorar, se eu sangrar, se eu arquejar em teu pescoço, me deixa quieto. Me atiça! Me deixa quieto em tua pele, me deixa quieto dentro de ti e faz morada em mim segurando a minha espada com as duas mãos. Quando fizer isto me olhe no olho e me beije.
E se eu gritar, se eu amar, seu eu gozar em teu rosto, não se esqueça de me lamber. Me deixa molhado, me envenena! 
E se eu gritar, se eu rosnar, se eu ranger meus dentes, me aperta forte e me rasga com as tuas unhas. Só não as crave em meu peito, as deixe longe do meu coração, mas me rasgue inteiro!
Quando eu arranquei teu desejo com a minha boca trouxe junto a tua alma e ela agora mora em minha casa.
Eu sou incrível quando estou feliz. "Puta merda", você disse. Quando eu acordei hoje estava sorrindo. Quando abri os olhos, me levantei e saí pela porta eu sorri e o mundo me sorriu de volta, me deu um beijo no rosto com o vento e um tapa no ombro dizendo: eu amo você. 
Quando eu fui dormir eu sorri também, mas o universo não é por minha culpa.