domingo, 9 de março de 2014

Borboletas


Aqui na minha varanda tem telhas daquelas brancas, acho que de plástico. Todo dia quando saio de casa, por volta das 6h há borboletas que inutilmente tentam atravessá-las, batendo as asas e esbarrando nas telhas, tentando voar até o céu, seguirem seu curso...
Todo dia é a mesma coisa, faça chuva ou faça sol, as borboletas sempre estão lá e aparecem em diversas espécies, às vezes tem umas de cores bonitas e outras que são horrorosas, o que importa é que sempre estão lá, todos os dias.
Assim como elas, eu também, faça chuva ou faça sol, estou sempre lá toda manhã, no mesmo horário, de segunda a sexta-feira abrindo a porta do pequeno apartamento, saindo, respirando, virando de costas e girando a chave para trancar a porta. Enquanto giro a chave realizo sempre o mesmo movimento de olhar para a esquerda acima e ver as borboletas esbarrando nas telhas, às vezes até rindo delas.
Contudo, na última semana, enquanto ria delas percebi que tava rindo de mim mesmo. Pra quê otário maior que eu? Que faz as mesmas coisas todos os dias pela manhã, não por não saber diferenciar um telhado transparente à minha frente, mas simplesmente por ter que cumprir minhas responsabilidades e repetindo, ao pôr o pé na varanda, sempre o mesmo movimento, o mesmo comportamento e indo trabalhar, dia a dia, faça chuva ou faça sol, achando que estou voando até o céu, achando que estou seguindo meu curso... e recebendo no começo do mês seguinte os cheques referentes ao trabalho exercido diariamente de segunda à sexta.
Quando chego em casa à noite, por volta quase sempre das 21h, sempre há uma ou mais borboletas secas no chão da varanda, perto da escada, iguais às que estavam esbarrando nas telhas transparentes. O curioso é que não há muita diferença entre eu e elas, pois da mesma maneira, chego à noite todo seco, carregado pelo vento, com as asas destruídas e já sem função, preocupado com os trabalhos e relatórios a fazer para o dia ou semana seguinte, que são cada vez mais e maiores; preocupado com qual alimento irei preparar para jantar no dia presente e onde almoçarei no dia seguinte; preocupado em quanto terei tempo para marcar uma consulta; com a cabeça cheia do que pode vir a acontecer já sabendo que certas coisas não vão dar certo, preocupações da vida, pois "esses casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem".
A maior diferença é apenas que aquelas borboletas são seres diferentes que voltam todos os dias em espécies diversas e eu sou o mesmo animal, imerso no tempo e na história, batendo as asas à toa e esbarrando em telhados transparentes todos os dias ao girar minhas chaves e pôr os pés na varanda, exercendo meu papel de estagiário de Psicologia pelas manhãs e aluno à tarde, contribuindo com o nosso belo quadro social, tentando alinhar minha vida e sempre me vendo falhar bastante seja em um aspecto ou em outro, mas sem a chance de me tirarem a vida naturalmente e enfim morrer de vez no chão da varanda perto da escada ao pé da minha porta; porém chegando em casa todos os dias morto de cansaço, de preocupação, de problemas, com mais uma infinidade de cabelos a menos e que continuam a cair quando adentro a morada, enfeitando meu chão inteiro em minha calvície precoce no auge de reles duas décadas de existências.
A mesma espécie de animal, quase um inseto, trabalhador, cansado e com fome, com a cabeça cheia, batendo as asas inutilmente e morrendo todos os dias, ficando velho e espancando minha juventude em prol de uma vida estável e bem sucedida, como nos dizem os filmes, em prol da experiência profissional e acadêmica.
A verdade é que a cada dia que passa morro um pouco mais e em cada girada de chave na porta vai junto um pouco de minha energia vital, sugada pelo mercado de trabalho e pela academia, tendo em vista que a maneira que minha chamada vida conseguiu se configurar do jeito que está hoje sei que trará muitos frutos futuramente, mas que no atual momento nada faz a não ser não me deixar viver, não passo de uma borboleta tola que bate as asas sofregamente tentando atravessar telhas transparentes e voar livremente, sem saber olhar pra trás e procurar outro caminho pra seguir voando, sendo alegre em curtos e tão raros momentos de existência pura que parecem paupérrimos e escandalosos, sobretudo aos olhos de quem vê.
Assim como eu existe mais um sem número e assim caminha a humanidade que bate asas inutilmente, talvez seja essa a primordial condição de viver no mundo em que vivemos hoje estabelecendo um completo universo cíclico estúpido do que se acha que é vida.
Um salve à todos e todas que não perderam a sua vida pra ganhar o pão e insistem em furar essas telhas, sempre acham outros caminhos, olhando para trás e voando pro outro lado, pois as telhas transparentes que barram o céu não passam de mais uma faceta e não o ponto central através do qual gira as suas vidas repetitivas, sempre, pois a palavra sempre aqui não se repete tantas vezes à toa.