quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Crônica da Quarta-feira de Cinzas, ou Pão com Ovo

Há uma mulher que está todos os dias na parada de ônibus do shopping Benfica pedindo dinheiro pra ir a Maranguape. Ontem ela também estava lá na apresentação do Sargento Pimenta bebendo, fumando e dançando como todo mundo ali ao redor. Entendo isso completamente, apesar de a essa hora já estar puro a limão e banhado de cerveja, todo assanhado e com as pernas doendo, após quase doze horas seguidas bebendo cachaça em pé. Acho que essa foi a melhor coisa que vi nesse carnaval.
Há gente triste pelo fim do carnaval, mas isso não consigo entender; até entender, mas não aceitar. E essa mesma gente é aquela que se comunica através de fotografias onde sorriem nas festas, no carnaval, estamos felizes, estamos vivendo, vejam só! Olha só como a gente sorri. Um bom dia no snap, um filtro e todo mundo fica bonito no insta, compartilha no face, bota no perfil do whats. Somos felizes. Dezenas de curtidas, um fluxo de comentários. Não tem graça se não tiver foto, não tem graça se as pessoas não verem. 
Carnaval.
Hoje, por volta do meio dia, quarta-feira de cinzas, dentro do ônibus pessoas com uniformes indo ao trabalho e eu voltando pra casa. O cobrador e o motorista trabalhando. Obviamente, todas as pessoas em semblantes sérios e eu rindo de situações que me vinham à cabeça, assanhado, fedendo, brilhando com glitter, sorrindo. 
Através da janela avisto um homem e seus dois cães pretos, caminham lentamente e param em uma lata grande de lixo, o homem recolhe papelão, dobra e coloca dentro do seu carro de geladeira. O ônibus continua parado no sinal. O homem senta e leva as mãos à cabeça, gostaria de ver se estava chorando ou não. De dentro do bolso retira uma sacola com um pão com margarina, imagino. Um pão mordido, amassado. Eu estava com fome também. Dois pedaços aos cães e o resto ele morde, à medida que mastiga não consigo pensar em mais nada, apenas observar enquanto o ônibus em movimento ia se distanciando. 
De pronto me recordo de uma cena da infância. Seis anos, andando pelo Centro com minha mãe. 
— Mãe, a gente já tá indo pra casa? Eu tô com sede. — Birra, muita birra.
— A gente tá indo pra parada, se aquieta!
Na esquina da Av. do Imperador com a Liberato Barroso um contêiner de lixo e três crianças sujas. Elas entram lá dentro e saem com coisas na mão, levam à boca. Eram pães.
— Mãe, o que eles tão fazendo? Por que eles tão comendo ali?
Minha mãe não soube responder, quis chorar. Eu quis chorar também. Calei-me, assim também a minha mãe. Nenhuma palavra até chegar em casa, um copo com água gelada, um banho e um prato de arroz com carne moída.
Cresci na favela, em bairros diferentes, pisei na lama, na bosta. Vi muitas coisas, sofri outras tantas. Mas essa cena eu nunca esqueci, talvez justamente porque minha mãe nada disse, ela poderia ter mentido, criado alguma história, mas não o fez. Além disso, vi muitas coisas, mas faziam parte do meu cotidiano, crianças comendo lixo não.
— Estude bem muito, meu filho. Assim você vai poder ter o que quiser. — Assim dizia a minha avó.
Não é bem assim, quase graduado e lendo Freud, Deleuze e Foucault cotidianamente. Na minha cozinha só tem arroz, ovo, farinha e cachaça. Na geladeira apenas água e um pedaço de queijo. Tá muito longe de eu ter tudo que quero. Mas sinto-me alegre, realizado com o que tenho, quase nada.
Carnaval.
— Isso aqui é um absurdo. As pessoas que moram na Serrinha não vão se tacar de lá até aqui no Mercado dos Pinhões só pra ouvir isso aqui. Isso não chega nessas pessoas. Senti-me muito mal, ontem fui ao shopping resolver umas coisas e não fui bem atendido em nenhum lugar. Todo mundo puto, trabalhando em pleno carnaval pra servir a gente que tá curtindo. — Disse o amigo.
A culpa estrutural burguesa, o legado que se tem de levar, a culpa, o mal estar, a consciência de classe que não sai dos muros das universidades públicas. Presente como uma gangrena na literatura do século XX. 
— Epa, calma aí, cidadão de bem! — Disse outro amigo psicólogo quando quase fomos atropelados por um sedan da Hyundai.
— Olha a cara da família brasileira nos olhando. — Enquanto adentrávamos o shopping para almoçar algum fast food barato.
Um chute na tampa de um hidrômetro e ela se parte ao meio e vai parar na rua.
— Ei, só por que tu é hetero, cis, branco e classe média tu pensa que pode fazer o que quiser, é? 
Risadas.
— Se a polícia aparecesse aqui eu já tava era preso sem fazer nada.
— Ele ia perguntar: foi você quem fez isso e quando tu respondesse que sim ele levava o Anderson.
Mais risadas.
Todo mundo ria bastante, a verdade é que não tinha graça nenhuma, mas o que fazer? É carnaval! E essas piadas perduraram o dia inteiro.
— Minha fantasia é de professor de História. Camisa de botão, cabelo no peito, assanhado e até o bafo de cachaça é igual. Bom dia, turma. A aula hoje é sobre Revolução Industrial, abram o livro no capítulo dois e façam um resumo.
Risadas. A gente riu bastante de um monte de coisas, foi massa.
Choveu quando acompanhamos o bloco pelas ruas do Benfica. Eu vi crianças, vi idosos, vi universitários barbudos, vi universitários com corpos torneados, “bombados”, de topete, de boné. Risadas, muitas risadas. Muita cerveja, muita cachaça, muito coquetel composto. Vi homens vestidos de mulheres sem nenhuma represália. Vi muito cidadão de bem.
— Meu bloco é o renascer, tô renascido na cachaça.
Após o episódio do chute na tampa do hidrômetro uma discussão entre psicólogos e historiadores, cinco homens graduados e graduandos, sobre o ocorrido, sobre as piadas.
— Eu gosto de ler os comentários dos portais pra não me esquecer de onde eu vivo.
Aquele homem com as mãos à cabeça, comendo um pedaço de pão e em casa eu sabia que tem pão, ovo, queijo, farinha, arroz, água. Mas semana que vem, vai ter o quê? Eu não tenho dinheiro. E nas outras semanas? E nos próximos meses? 
— Vai dar certo.
— Chegou a turma do funil. Todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto! Hahahaha! Mas ninguém dorme no ponto. Nós é que bebemos e eles que ficam tontos! (...)
Eu queria pular mais carnaval, queria ficar triste pelo fim do carnaval. Queria ver graça em tirar fotos em smartphones e postar nas redes sociais... queria? Não sei. O carnaval acabou, e daí? Na verdade, ele nunca começou. Você que acha que sim, você acha que passou pelo carnaval, mas não passou por lugar nenhum.
Eu queria pular mais carnaval, mas meu pé tá quebrado. Aquele homem mais sujo do que eu quebrou meu pé e sua foto no instagram pisou nele, mas nem doeu. Não importa, é quarta-feira de cinzas.
— Hoje já é terça-feira! Sabe amanhã quarta-feira de cinzas? Pois é, sou eu. Eu já sou a própria cinza aqui sentado na calçada... (...) Ninguém respeita o bebo sentado na calçada.
Deveríamos?
Nada mudou. 
Nada mudou porque nunca houve coisa nenhuma igual, nunca houve coisa alguma. Esse pão com ovo e café servido pelo amigo foi a coisa mais feliz e charmosa das últimas 24 horas.

Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri
Se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando
Cantigas de amor
E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegra a cidade

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Fragmento

"Vou arrancar essa folha pra mim... Pra ler quando eu estiver 100% sóbria... Enfim, eu sei que não sou uma garota que vende o corpo, nem o tipo de puta que representa o que há de podre no mundo... Mas isso também é uma questão de opinião... Para muitos eu não sou uma garotinha inocente, eu sou uma idiota, arrogante e hedonista... Não deixo de ser mais uma merda no meio de toda merda que há no mundo... Eu sei que tenho muito o que agradecer, mas não consigo deixar de me sentir miserável e medíocre..."

Algum lugar em 2011.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Covardia


Meu avô era uma homem que sorria, mas seu riso era muito estranho, machucava mais do que qualquer outra coisa. Com aquele homem aprendi a apreciar a solidão, aprendi isso sem trocar com ele sequer duas palavras durante toda a minha vida, apenas um “feliz natal” que ele me deu junto de uma edição d’O Manifesto Comunista, de Marx e Engels, e uma coletânea gravada em mp3 do Raul Seixas. Foi há três anos atrás, eu tinha 14 anos, nunca havia o visto. Era uma história que a família evitava, mas ouvi algumas vezes que ele era louco, doente, bêbado e a que mais doeu: covarde. Apesar de ter crescido sem conhecê-lo, a maneira como falavam quase sussurrando me machucava de alguma maneira e a palavra que mais doeu foi essa, covarde. Acabei absorvendo quase que inexoravelmente a repugnância moral pela falta de coragem e aprendi por conta própria a me virar sozinho. Na verdade, sempre soube que era mentira, eu não gostava dos ovos com a gema mole que minha avó fazia, nem do bolo fofo de laranja que ela sempre fazia aos sábados, odiava a gemada que ela me deu por anos aos domingos pela manhã e eu nunca disse isso. Nunca fiz os ovos eu mesmo, nem deixei de comer o bolo com o café extremamente doce que me irritava, nem a gemada que era meu desjejum semanal de penitência por algum pecado dos meus pais. Eu nunca falo nada. Considero isso de certa forma uma virtude, ficar calado é difícil. Isso também sei que é mentira, pois me calava por calar, por medo, por covardia.
O tempo passava normalmente e eu sempre o notei, meu corpo nunca fez questão de esconder: meus pelos pelo rosto e corpo inteiro, meu tamanho, meus braços, meus dentes, meu pênis. Mas conforme esse tempo passava me incomodava também a sensação de covardia. Certa vez ouvi “Você vai abandonar a sua família, vai ser um covarde igual ao avô”. Tenho quase certeza que ninguém disse isso, que era coisa da minha cabeça durante alguma das minhas constantes divagações. O que é comum para um jovem solitário em uma casa cheia de gente que fala, grita, arrota, peida, arrasta os chinelos o tempo inteiro e fica querendo pegar em você sempre que tem oportunidade. Um inferno. Encontrava refúgio nos livros que alugava na biblioteca da escola e nas bibliotecas públicas, os lugares que mais frequentei, curiosamente depois de conhecer meu avô e ele ter me dado aquele livro comunista, fiquei curioso. Ouvi as músicas do Raul e o verso “olho os livros na minha estante que nada dizem de importante, servem só pra quem não sabe ler” sempre me incomodou, penso nele quase todos os dias.
Poucas vezes se vê meu avô andando pela casa, ele não fala com ninguém. Apareceu um dia, em dezembro. Bateu à porta, trazia consigo uma mochila dessas que se leva com uma só mão, de lado. Barbas longas e grisalhas, óculos com armação preta grossa que contrastava com seus poucos cabelos grisalhos e desgrenhados, parecia que há anos não os penteava. Deu umas palavras, abraços curtos e foi em direção aos quartos de minha avó e de minha mãe. Aquelas mulheres se olhavam, parecendo sem saber o que dizer. Ninguém me apresentou, apenas fiquei sem saber o que se passava, peguei meu Mágico de Oz que estava relendo e fui para o meu quarto, para evitar falar com visitas que não conheço. Odeio quando minha avó, minha mãe ou minhas tias ficam mostrando a casa, querem me mostrar, me pedem para cumprimentar as pessoas. Odeio, mas sempre faço. Porém, dessa vez não.
Mais tarde vieram me dizer que se tratava do meu avô, o que eu nunca conheci, mas sabia que existia, apesar de sempre evitarem comentar.
A figura daquele estranho homem velho com aspecto jovem foi se tornando comum com os almoços e jantares diários à mesa. Todos comiam à mesa, minha avó aproveitava a oportunidade para comentar das pessoas do bairro que morreram, nunca fazia a menor ideia de quem se tratava. No começo suas feições eram até amigáveis, apesar de dificilmente sorrir e quase nunca falar, o som da sua voz ainda hoje me é estranho. Com o tempo ele foi ficando mais sisudo, cara fechada. Começou a construir algo no quintal e eis que enfim se ergue uma casa de um cômodo com banheiro. Para lá levou uma rede, uma mesa, uma cadeira e a sua mochila que estava aberta, vi lá dentro dezenas de livros. Quase nunca ele saía, vez ou outra para comprar cigarros, vinho barato e cachaça na bodega vizinha. 
Estava próximo o natal, a data que mais odeio. Juntava a família inteira lá em casa, todos falam comigo. Meu único desejo era ficar em coma e só acordar depois de dois meses, passado também o carnaval. 
E esse natal ainda contava com a presença tacanha e confusa daquela figura que eu nunca soube sequer o nome. Em seu semblante havia autoridade, mas também conseguia identificar carinho e uma inexequível leveza que ele trazia no olhar e nos dentes.
Quando chegou na sala, aproximou-se de mim com um embrulho e disse “feliz natal”. “Obrigado”, respondi. Sentou-se no sofá e respondeu aos familiares que pareciam ter muitos assuntos para conversar, mas que se acanhavam. Fui direto ao quarto e vi os presentes: um livro e um cd.
Depois desse dia nunca mais falei com ele, li o livro que me deu três vezes, uma em cada ano e o cd ouvia constantemente. 
Três semanas atrás comecei a ficar com uma menina da escola, ela se chama Joyce, não a acho muito bonita, na verdade não sei bem o que me atrai nela, talvez nada e a iniciativa não foi minha, mas acredito que vamos namorar. Ela tem uns papos estranhos sobre magia, astrologia, signos, essas coisas. Diz que gosta de mim porque sou de peixes. Fez o meu mapa astral, sinastria amorosa e mais um monte de coisas que não lembro o nome. Nada disso me interessa, na verdade. Ela escreve coisas, uns poemas. Escreve em papel de caderno e me dá uns dois ou três toda semana.
Há uma semana atrás minha mãe, com seu horroroso hábito de fuçar minhas coisas abriu minha mochila e encontrou os poemas de Joyce. Veio brigar comigo, pois eu não havia contado nada, ia prestar vestibular e precisava ser aprovado, que eu era estranho, que não falava com ninguém e gritou “Você quer ser igual ao vagabundo do seu pai, um covarde, um imprestável?!”. Dessa vez não aguentei muito e respondi também gritando enquanto derrubei uma cadeira com um chute “Eu odeio você! Odeio essa família! Vocês são repugnantes, quero ir embora! Vocês não conseguem ver que vocês só atrapalham a minha vida?! Eu não gosto de você, nunca gostei!”. Minha mãe pôs-se a chorar sentada na cadeira à mesa. Em minha mente passava-se a estranheza completa da situação por algo que considerei no momento tão irrelevante.
Paralisado, fiquei sem saber o que fazer, quando virei o rosto vi meu avô na porta da cozinha a me olhar fixamente. Ele me destruiu apenas com isso, seu olhar fulminante atravessou a minha espinha. Garganta seca. Permaneceu a me fitar por mais quarenta segundos que pareceram uma eternidade, senti que ia morrer. Entrei no quarto, encostei o guarda roupas na porta e a cama logo em seguida a fim de me trancar. Dormi.
No dia seguinte minha mãe, minha avó e minha tia andavam um olhar cabisbaixo, o gosto era de tristeza, de ignorância. Evitei falar, ninguém falava, na verdade. Algo muito grave aconteceu. Fui à escola, mas desviei o caminho para a biblioteca municipal, lá passei o dia inteiro, não apareci em casa para almoçar e comi um biscoito recheado que levava na bolsa.
Chego em casa e o clima continua estranho, ninguém pergunta sobre por onde andei nem por que não almocei em casa, se me alimentei, todas essas coisas que sempre perguntam. Tomo banho, descanso um pouco e compareço à mesa na hora do jantar, um prato a menos, meu avô não jantou conosco. Não perguntei nada, ninguém trocou palavras. Minha mãe lava as louças, minha avó recolhe as panelas, depois juntam-se à minha tia na sala para assistir as novelas.
Saio do quarto e me dirijo ao cômodo que meu avô construiu, ele não está lá. Não me sinto surpreso, não há mochila nem rede, apenas a mesa, a cadeira e um livro: Demian, Hermann Hesse, em uma edição antiga. O folheio e descubro um bilhete datado de hoje.


Eu poderia ter esquecido... ou morrido... matado você... seria o caminho mais fácil e natural das coisas... mas eu vivo... bastante, infelizmente!
Mal me digo todas as vezes que me recordo de algo sobre nós trazido por você ou pelos outros, eu não quero saber, será que é tão difícil respeitar isso? 
Eu poderia fingir ter esquecido, mas também somos o que perdemos. 
Eu menti, eu não te perdoei e jamais me perdoarei por isso.
Não se meta mais com a minha vida.
Eu nunca te amei.
Adeus.


Decidi ficar com o bilhete só para mim, não sei a quem se destinava, se para minha avó, minha mãe, minha tia?  Aliás, era endereçado a alguém? A mim? A mim impossível. Se bem que acredito que ele imaginava que eu quem o encontrasse, que adentrasse o seu espaço, pois ninguém ousava entrar lá e ele deixou um livro, só quem gosta de livros sou eu... No fim, percebo que há algo muito grave na história dessa família e eu tenho o poder de interferir nisso ou não, não queria este peso, não precisava disto, não precisava mesmo... eu não quero.
Sei que ele voou, talvez demais.
Devo voar também? Acho que não.
Enfim, acho demais, não sei o que fazer. Isso não é nada confortável, mas é assim que tem que ser.
Eu covarde como sempre.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

(Trans)parecer Semântico

O respaudo do meu olhar
A te observar
- Embriaguez -

O veneno de teus frutos
A insustentável fluidez de teus desejos
- Fortuitos -

São apenas resquícios de noites de outrora
Volúpia
Vinho
Prazer
Blasfêmia
- Glória -

Teu corpo difuso
De certa maneira maligno
Como um súcubo agoniado
Vem ao meu quarto incendiado
- Queimando! –

Tuas formas sinuosas luxuriantes
Impregnadas em minha pele bruxuleante
Permanecem pecaminosas e constantes
Mais uma vez um sussurro confuso
Desejo gritante, angustiante
- A porta de Notre-dame –
Avante, meu amante!

Útero molhado, romântico
Semear de demônios
Anjos sensuais
Todo o vício semântico

Sentimento oceânico
Um murmurar entrelaçado
Quântico

Uma marca de lingerie
A química pura
Um proferir embriagante
Hálito de álcool com batom...
“mon cheri”

Toque transcendental, bestificante
- Amor –
Desmanche de convenções hilariantes
Ousadia sinestésica
- Torpor -

Rainha ousada e pedante da luxúria
Olhos malignos e possuídos
Minhas lamúrias esdrúxulas
Fantasias proibidas de jovens falecidos

Solidão na mesa e garrafas de cerveja
Meu coração batia piegas naquelas espumas
Nessas horas você sempre pragueja:
— Meu amor, meus lábios vermelhos são seu comensal!

Entre baforadas e fumaça
Vejo um olhar de mulher experiente
Lábios fogosos e cigarros sensuais
Eu cativo de um clitóris
Pobre demente

Porém, sei o que há por trás de seu batom
Sem sua carência eu seria apenas mais lixo
Esse vinho barato com cerveja em seu organismo
não passam de tentativas desesperadas
loucas e frustradas de preencher arbitrários vazios

Jovem cheio de amor para dar
No fim, meu bem, sou só um bicho

Vá embora de minhas lembranças!
Largue minhas sinapses!
Essa sua inconstância me cansa
Remova logo essa maquiagem
Jogue fora esse cigarro barato que acha sofisticado
Vá pra casa!

Deixe-me em paz com minhas espumas
Quero uma dor de cabeça mais forte
Misturo com vinho barato
É mais sutil, faz-me plumas
Pequenas nuances etílicas de um espírito de porco
- Decadente -

Com tantos amores niilistas
E com essa décadence de l’ineffable folie
Fico parado na madrugada sozinho, na pista
Nunca senti tanta falta de uma família

Ei, mundo suicida, o que tu deixastes para mim?
Não quero mais essa loucura, é hora de dar um fim:

Essa ilusão da sua falta me transformou no seu vinho
As fases ousadas e etílicas da existência
As etapas do caminho da vida
Os insumos preconizados
Calejados de amor
Vã filosofia, quando meu saber é sua dor

A falta é o que não me falta
E o que não me deixa mentir
Mas se eu soubesse de tudo que me mata
Meus gametas se suicidariam
Em concordata

O assassínio da linguística
Como um juiz profano do paganismo
Traz-me sua base de cálculo servil
Em resíduos amnióticos
Louco
- Vil -

E os anjos, assim, resolvem morrer
Os que eu conhecia já se foram em suicídio
A supervalorização dessa liturgia laica
Vangloria sua rebeldia clitoriana
- Paradigmática –

De maneira monárquica é o paraíso terrestre
Seu juiz estupra e em nós ejacula
É a terrível queda de anjos molestados!
Anoitece em velocidade divina,
diabolicamente sequestrados!

A escassez da falta é minha liturgia santa
Sua santidade se encontra nos testículos de seus descendentes
A concupiscência transformada em ciência se levanta
Seus ovários, amiúde, acobertam e guardam
As futuras sementes
- Dementes -

Esse é o mal estar hipocondríaco do seu útero histérico
Da sedução comuta afasias malignas
Obliteradamente fez-se em clamor profético
A contemplação fálica de gritos sinestésicos

No mais
Deixo-lhes todos os meus gametas
E levo os ovários em um saco de lixo
Malditos todos somos
Que um pouco menos de infelicidade só buscamos
Um todo mazelado cheio de caprichos.



Março de 2011