terça-feira, 30 de setembro de 2014

Poeira

Eu sou o segredo dos solitários da noite
Aquele que tem olhos nublados
Pois daquele que vem sempre ao lado
Da escuridão do meio-dia do corpo
Que faz do inverno o sol profundo
Da solidão colhe e seme pés surrados 

O jogo perde o feitio:
O amiúde estraçalha o sono
O sorriso escarnece a morte
O deitar-se contempla a vida

Anoiteceu dentro de mim e eu vi as mesmas faces
Encontrei-me com a criatura do lado vermelho
Sortilégio foi o que nunca se rompeu em escárnio
Irrompe o som de um grito negro, sórdido!

Nuvem... anuviado!

Eu fui aquilo que os poetas ordinários sempre quiseram ter 
Almejado por todo aquele que habita o animal das ruas
Não há mapa que aponte o meu seio
Não há homem que ousou isto ser

E eu levo comigo as glórias escondidas
A derrocada de um lábio trêmulo
A utopia de uma lágrima sincera se quer
Se quer mesmo me ousar
Te trago meu mais puro símbolo extraviado:
Lábios! Lábios! Lábios!

domingo, 28 de setembro de 2014

Parece cocaína

Parece cocaína, mas é só tristeza. Na verdade não é nenhum dos dois. Gostou de saber que pessoas inesperadas se preocupam, mas a tempestade que se encerra em seu peito não cessa de jeito nenhum. O fez pesar os pensamentos de maneira desnecessária, inflamado de ciúmes, inflamado de sentimentos, inflamado de confusão, louco de medo, perdido na temida segurança de um beijo que faz gemer de saudade, de paixão, tesão e amor que não se perde nem se acaba, apesar da teimosia.
Quando fez amor não conseguiu olhar na cara, não conseguiu suportar olhos nos olhos diferentes, sôfregos, estranhos. Gozou dentro, de quatro. Introspectivo, não conseguia se erguer, somente após a cachoeira de palavras jorrar pôde enfim amar por um momento que infelizmente precisava acabar.
O que se seguia após era um encontro quebrado, por isso triste, sonolento. O gole da cerveja gelada e cara o fizeram animar-se.
— Deixa de ser alcoólatra, tem vergonha.
Não teve coragem de dizer para ninguém o que queria de verdade e isso lhe era uma coisa estranha: não ter coragem. Não tirava da cabeça a ideia corrosiva da mentira engolida. Quando fingiu acreditar foi o mesmo de quando Ismália enlouqueceu e agora essa tempestade.
— Deixa chover.
— Ai, meu deus. Isso me faz ter coragem pra deixar chover mesmo. Mas odeio me sentir vulnerável, você sabe.
Por dentro tudo dói, arde o peito, queima as entranhas. Arde o desejo, queima a língua com a garganta banhada pelo gozo quente e complacente, pois está muito cansado. Cansado do peso da cabeça, desse ano de 2014 de fins e recomeços e reencontros e rompimentos, essa confusão toda, as pessoas perguntando as mesmas coisas, dizendo as mesmas coisas e a teimosia negando-lhes a razão.


“Eu me sinto tão frio
Com vagabundas e gim
Essa bagunça em que nós estamos”


Passou o dia inteiro ouvindo vômitos enquanto permanecia sentado, no ar condicionado, comendo o que aparecia. Por que essas pessoas só sabem falar sobre esses mesmos assuntos já tão banais? Deveria se envolver ou simplesmente fingir que não se importa. Fingiu não se importar e olhou o teto. Para não dizer que não se implicava, analisou. Antes disso se encontrava em palavras macias de um olhar sincero que gostaria muito que se estendesse.
— Tu tava numa vibe muito teenager.
— Eu?! Como assim?!
(...)
— Ah, mas não, isso não tem nada a ver. Isso é o que aparece pra vocês porque é o mais fácil de ver, né. Mas não, nada a ver.
(...)
— Ficamos preocupados, todo mundo que leu, que viu aquilo no twitter.
— Ah, foi só uma experiência acho que necessária, mas nada a ver, não é minha vibe.
(...)
— Vocês foram as grandes mudanças na vida um do outro e se acontecesse seria massa.
(...)
— Sozinho não, né. — risos. — E o que o Anderson anda fazendo da vida além de promover os cabelos bonitos dele?
Porém, apesar de tudo


“I feel so cold
On hookers and gin
This mess we're in”


E a tempestade dentro de mim se demora em não passar, preciso chorar, nos seus braços, de preferência.

A sobriedade de uma lucidez não etílica, nem com o sistema nervoso central estimulado:

Irrita-me, me banha e me chama [e me beija], mas teima em procurar, nas minhas palavras motivos que justifiquem não mais querer viver, pois agora enxerga o mundo embaçado por uma redoma que apesar de necessária jamais funcionará conosco, pois o mesmo pensamento sempre retornará quase como um amor fati porque apesar de insistir numa aleatoriedade inventada eu vou te acompanhar, pequena, menina mulher da pele preta. Mesmo neste momento sentindo-me louco, quebrado, à beira de um grito alto demais para ser ouvido com toda essa bagunça em que nós estamos. Estou louco de ciúmes, estou louco de vontade de te morder com meu sorriso, de te bater com meus dentes, mas não quero machucar, é só a vontade de deixar marcas porque não suporto outros elogiando o sorriso que eu beijei e fotografei não só com as minhas retinas, que beijei e fotografei com o nosso amor em espaços tão caros a nós, que só nós entendemos, que só a nós deveria pertencer e referenciar, mas que vem à público sem os devidos créditos, nem mesmo o mínimo senso a não ser o meu. Eles não fazem ideia e você faz questão de lhes salientar que não precisam. E se a teimosia da insegurança que desemboca na loucura de fazer tudo que se pode pela frente reina sobre o imperativo apego ao amor que sim, é infindo, é porque você jamais pisará no passado e cairá no futuro pelo simples fato de insistir em negar o presente, que jamais será passado, nem mesmo na teimosia de invenções e mentiras protecionistas que não cabem sequer nas fantasias superficiais de relações humanas deveras complicadas.
Cala essa boca, para de falar besteira e rir dessas besteiras, se envolver com besteiras, joga essas pessoas fora que só te dão trabalho desnecessário e me beija, pois os meus braços, como bem sabe, sempre será o acolhimento de paz e tranquilidade, onde seus demônios vão embora e são exorcizados enquanto você se contorce com olhos virados para o além enquanto estou dentro de você, profundo e quente, como o nosso amor indelével.




sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Lua em Peixes, ou Sobre a Saudade

“Nessa cama tinha uma vó”. Pensa o menino enquanto voltava do banheiro em direção à sala para continuar a ler seus gibis e passou em frente ao quarto fechado, mas limpo e cheiroso, arrumado. Certa vez entrara enquanto a mãe arrumava o quarto já vazio. Criança, não fazia a mínima ideia do que aquilo representava e ficava até chateado, pois ele mesmo não tinha um quarto só para si! Por que diabos haveria daquele cômodo ficar ali, vazio?!
Ia à escola e em sua lancheira não havia mais suco de maçã. No lugar uma maçã inteira e um suco industrializado de caixinha sabor uva. Ele nem gostava mesmo do suco feito pela avó.
— Hoje eu acordei e fui fazer tricô.
— A bença, vó.
— Deus te abençoe, meu filho.
Sorriso.
— Hoje eu acordei e fui fazer tricô.
— A bença, vó.
— Deus te abençoe, meu filho.
Nenhum tricô.
O tempo parecia brincar de alguma coisa, quase uma entidade. Isso tudo dava àquele momento todo um toque mágico e não era uma velha solitária, pois sempre rodeada de filhos e filhas, netos e netas, gatos e gatas, os quais repetiam as mesmas palavras, mas não o mesmo pensamento, salvo o “eu te amo” que ninguém ousava dizer naquela casa.
Naquele telhado tinha um gato e naquela parede tinha uma aranha. Naquela panela tinha feijão. Naquele prato tinha baião com banana em rodelas e naquela mesa tinha uma família. No café depois do almoço havia um pai, os pés ainda sujos do roçado, botas grandes, bigode grande, cabelo curto. Ao lado da cadeira de balanço havia uma mãe, cansada após ter lavado a louça. No cheiro de gordura havia uma mão e nessa mão havia unhas quebradas. Nos ossos e restos de comida havia cães. Um pouco distante, mas também no mesmo lugar, havia gatos. Havia porcos, havia galinhas e um galo, havia patos, havia macaquinhos nas árvores, havia gaiola onde havia pássaros. Havia muitas coisas e faltava pouco. Fora a velha que não se apercebera de muita coisa ali, nem dela mesma. Era estranho porque era como se não houvesse ela, apesar de que naquela casa nada era mais presente do que seu cabelo branco e o seu cheiro de urina.
Uma responsabilidade compartilhada por uma certa dor. O menino certa vez pensou “ela devia morrer” e ela morreu. Mais tarde pensou nisso de novo e quis se culpar, até chorou, mas uma menina lhe beijava o rosto, não pôde chorar direito porque se lembrara de que vindo daquela casa ninguém diz “eu te amo”. Nas mãos havia corpo. No sexo havia amor. Sim, havia. Pois havia muitas coisas e faltava pouco. Fora a velha morta que agora sim é que não se apercebia de absolutamente nada, quem sabe, aliás? Apesar de o seu quarto vazio ser o cômodo mais cheio da casa. Sua cama com cheiro de urina, suas sandálias ao pé do colchão, ao lado do penico que vez ou outra fazia barulho de madrugada, mais barulho que os pais do menino faziam à noite quando ele, ainda acordado, ouvia e às vezes até via.
Havia uma cidade naquelas pessoas e havia ruas naquelas carroças. Havia carroças naqueles animais e havia crianças naquelas professoras do jardim. Havia praça naquela igreja. Foi lá que a velha iniciou seus amores, assim nasceu um pai, que havia no roçado e onde havia uma mulher. Só assim pôde haver um menino naquela mãe e que odiava aquele quarto, que não pôde chorar mais tarde porque a amada apaixonada não deixou, tapando-lhe a boca com seus beijos, enxugando com ternura os seus olhos e molhando com sua língua o espaço antes ocupado pelas lágrimas.
Da igreja, do útero, da vagem de feijão debulhada em cima da mesa até o café servido com cuscuz. Do cuscuz com café, do fumo ao fim da tarde, do silêncio quando batem as seis horas até o quarto vazio impregnado com o cheiro da urina da velha. Naquela avó havia um quarto.
O menino já homem chorou quando sintonizou um rádio velho de pilha, o qual na antena havia um pai, que, por sua vez, no pai havia um bigode e botas grandes. Seus filhos e a mulher assustados, afinal quem vem daquela família onde havia uma casa não diz “eu te amo”.

Quando batem as seis horas
de joelhos sobre o chão
O sertanejo reza a sua oração
Ave Maria
Mãe de Deus Jesus
Nos dê força e coragem
Pra carregar a nossa cruz
Nesta hora bendita e santa
Devemos suplicar
A Virgem Imaculada
Os enfermos vir curar
Ave Maria
Mãe de Deus Jesus
Nos dê força e coragem
Pra carregar a nossa cruz

Naquela canção havia um pai fumando. Naquele pai com seu cigarro de fumo havia um abraço. Naquele abraço havia um poema. Naquela poema havia Gonzagão. E havia uma mulher. Uma mulher que faz café e limpa urina, faz baião e cuscuz, corta banana em rodela e debulha vagem madura. Naquelas panelas havia afeto.
O menino já muito tarde, muito tempo depois, viaja. Naquela viagem havia desejo. Naquele carro havia uma família. Naquela família havia palavra e naquela palavra havia silêncio.
De volta a casa havia ainda um quarto. Naquele mato havia um sítio. Naquele sítio havia uma cerca e um homem de olhos marejados, barba feita e roupa formal. Naquele chão havia um sapato engraxado. Naquela graxa havia suor e moedas. Naquelas moedas havia fome. Naquela fome havia outro homem, em algum lugar.
“Naquela cama tinha uma vó”. Hoje nessa cama há saudade. Nessa saudade há um peito. Nesse peito há um “eu te amo”. Nesse eu te amo há uma cisão, pois naquele momento o menino decide ficar. Não lembra o nome daquela mulher ao seu lado nem daquelas duas crianças se entreolhando assustadas. Ele tem cheiro de urina.
— Já chega das suas doidices, eu tô indo embora.
— Por favor, leve o carro e todo o meu dinheiro.
Havia adeus naquele amor.
Havia beijo naquela paixão.
Naquela cama onde tinha uma vó agora só há saudade.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

A gente ainda nem começou

Estava lendo o jornal no bar, tomando um café e comendo um pão com margarina. As casas da rua começaram a ter grades nas janelas, mas o bar continuava sem grade nenhuma. As portas abertas, a sinuca na calçada, um rádio baixinho e ele ali lendo o jornal. Sem camisa, a barriga protuberante nem chamava atenção, barba por fazer, respiração arquejante.
Conferia a coluna de esportes, os times locais iam mal nos campeonatos nacionais e o Ferroviário havia perdido novamente, em casa. O ar do Jardim Guanabara continuava o mesmo, mas as notícias nos jornais eram ruins hoje, ontem foram também e ele sabia que amanhã seriam piores, depois de amanhã também e assim por diante.
Passa o garoto gordinho de bicicleta, filho da vizinha chata, e ele grita algum insulto de modo a brincar. O menino devolve:
— Vai se lascar.
Ri bastante.
— Vai ali comprar a mistura pra tia. Meio frango, uma cebola, um tomate e cheiro verde, que acabou.
— Cadê o dinheiro?
— Passa no bar e pede ao teu tio.
A postura do tio sentado assistindo televisão era de certa maneira imperiosa, apesar da cena esdrúxula de um homem gordo de meia idade esparramado em uma espreguiçadeira com o ambiente repleto de engradados de cerveja e garrafas de coca cola.
Enquanto seu tio procurava o dinheiro pelos bolsos olhou para o jornal em cima do engradado e leu rapidamente algumas manchetes: “jovem é assassinado”, “acidente de trânsito deixa mortos”, “escândalo de corrupção”. Lembrou-se de uma vez estar cantando Cachorro Urubu “todo jornal que eu leio me diz que a gente já era, que já não é mais primavera” e de repente levantar o olhar e vê seu mesmo tio com ar de orgulhoso na porta o vendo cantar, sentiu vergonha, sentiu afeto.
Em casa, a mulher prepara o almoço enquanto as crianças assistem desenhos animados na TV. O cheiro do tempero no feijão e do arroz sendo refogado se espalha pela casa. No rádio toca um cd da Ivete Sangalo enquanto ela canta todas as músicas sem errar nenhum verso.
Era um casal jovem, com suas cerca de três décadas cada, quase quarenta anos e uns vinte de casados.
Casa limpa, frutas sobre a mesa.
— Vai tomar banho pra ir pra escola!
— Vou já, mãe. Deixa só terminar os páurenjer.
— Vai logo, menino!
— Peraí, mãe.
Almoço servido, banana cortada em rodelas misturada com arroz e feijão no prato. Farinha, pimenta, azeite, salada de alface, frango cozido, suco de caju. Mesa farta.
Crianças na escola e ninguém para atender após o almoço. Melhor fechar o bar um tempo. O sobrinho fica em casa, procura por revistas, quer ler algo. Os programas da televisão nesse horário são bestas e não tem nenhum DVD que não seja arranhado. Em cima estão seus tios tirando um cochilo após comer. Sobe as escadas sem se preocupar em não fazer barulho. A casa era projetada com um só corredor para todos os cômodos e ao pôr os pés depois da cozinha, chegando ao quarto, a tia de pernas abertas com aquele homem em cima dela enquanto gemia “ai, nego, ai, nego”. Dá meia volta e desce em silêncio. Se deita no sofá e assiste o Video Show, na Globo. Procura moedas pelo sofá e encontra quase cinco reais.
Na locadora de video game enquanto faz transações e muda as táticas de seu time no Winning Eleven se recorda da cena, pensa nas vezes em que viu a tia nua, peitos bonitos. Sentiu vontade de se masturbar. Guardou a hora e foi à lan house, jogou Counter Strike, perdeu na maioria das partidas. Olhou um site pornô, mas algum receio sem motivo aparente o fez fechar e ir para casa.
— Onde tu andava, menino?
— Na casa da tia.
— Almoçou?
— Almocei sim.
Na TV passava algum programa de auditório da tarde, sua mãe fazia crochê. Sentiu vontade de estar na escola, não havia aula hoje, queria falar com alguém sobre o que viu, mas não havia ninguém. Permaneceu com isso na mente.
À noite se masturbou pensando nos peitos da tia e em seu gemido, abriu o velcro do calção com cuidado para não acordar a mãe. Obviamente ela estava acordada, mas fingia que nada acontecia. Nem sequer ejaculava ainda.
Sábado, como quem tem a certeza do que faz, saiu de casa levando sua coleção de tampas de garrafa mais uma vez em direção à casa da tia. Ao passar pelo bar lotado do tio que ficava no caminho vai pedir a bênção, chegando lá encontra o portão aberto, mas não a encontra em casa. A TV estava ligada e ninguém assistindo, o ventilador na sala também ligado. Sobe as escadas fazendo barulho, como sempre, e ao pôr os pés no quarto vê o primo mais novo que ele por trás de um dos meninos da vizinhança deitado de bruços sobre a cama. Os dois se assustam. Ele ao invés de simplesmente voltar em silêncio como fez da outra vez permaneceu lá sem saber o que fazer.
— Vem meter nele também.
— Não.
— Então fica olhando pra ver se vem gente.
E lá ficou, alguma coisa o fez ficar por lá, mas alguma coisa também o causava ojeriza.
— Não conta pra ninguém.
— Beleza.
Quando descem sua tia olha estranho, mas finge dar de ombros. As tampinhas de garrafa em seu bolso fazem barulho.
— Vamo pedir dinheiro ao pai pra ir jogar.
— Bora.
O tio bêbado lhes faz um cafuné, diz algumas brincadeiras com os dois e os bêbados por lá riem alto.
— Vamo jogar jogo de carro, de dois.
— Vamo.
De volta em casa brinca com suas tampinhas. Na sua cabeça a imagem de pessoas em cima umas das outras ferve, tenta não pensar, mas a imagem permanece e na noite de sábado quis dormir abraçado com sua mãe na cama. Estava excitado, ela pareceu não se importar.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Filhas II

"De quem é Alice? 
Alice não se encontra mais aqui, está sentada no banheiro olhando os primeiros pêlos. Seus olhos grandes e vermelhos refletem o espelho com desdém. Alice não mora mais ali, mora dentro de uma gaiola que balança com o vento. Alice tem poucos anos, mas já deixa um cheiro de morte nas suas lágrimas. Gosta de sentir seu corpo em gótico mundo, isso lhe deixa mais atraente. Não para quem. Alice tem dois ursos no quarto, um com os olhos rasgados se chama Dylan, outro é pintado de canetinha vermelha, se chama Dora. Ela sempre os chuta sem notar. Joga-os para todos os lados sem perceber. Mas durante noites chuvosas ela os abraça bem forte. Noutro dia os ursos não estão mais lá. Tem medo da morte, mas principalmente a morte do pai. Embora o pai esbanje saúde, chora toda vez que essa ideia passa por ela. Desde que viu pela primeira vez um pornô e um homem ejaculava em cima de uma mulher dizia-se que nunca iria amar pessoas. Pois homens e mulheres remetia-lhe um nojo irreversível. Se tivesse um meio de escapar do mundo, se tivesse um meio de ser outro, de ser outro ser.
Alice não mora mais aqui, mas é esse seu endereço."

J.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Se você não é Fernando Pessoa, não escreva!

Anticristo disse certa vez que se escreve com sangue, escrever pode não ser complicado, mas é difícil. Porém, quando se chuta as saudades há sempre um lunático chamando para pisar na grama e isso nunca diz respeito somente a você. Ele fica lá na sombra, no lado escuro por onde andam os cavaleiros de Cidônia.
Dessa maneira, se você não é Fernando Pessoa, não escreva. Fernando Pessoa nunca escreveu, senão o mar, molhado com o sangue dos leprosos e imorais em stultifera navis: é doce morrer no mar; não, Caymmi, não é.
Álvaro de Campos também estava sorrindo quando leu isso pela primeira vez, mesmo sem saber quem era o tal de Pessoa que fez Belchior de olhos marejados. E seu riso era o mesmo do Syd when the madcap laughs, bem como do Ahab, louco, e bem como de Jonas: é um sorriso que mostra todos os dentes, assim que nem o meu, é um sorriso que morde.
Sob a égide da Lua ela não quis olhar o lado negro para onde queria levá-la, permanecendo sob a claridade roubada do Sol, mas coberta pela energia do corpo. E isso foi o que os alquimistas encontraram quando chegaram: it’s all over now, baby blue.
Mas era mentira, não havia acabado nada porque a saudade habita em muitos lugares e os sorrisos beijados parafraseiam que a “a saudade é o tudo que de repente virou nada ou é o nada que insiste em pensar ser tudo”, pois o nada insiste, insiste em existir. Ninguém ousa calar a boca com um beijo, pois nem mesmo os beijos lhes taparão a boca… em linha reta enquanto paira Für Elise ao redor com os pássaros.
Os sabores dos olhares, o cheiro das carícias, a dor póstuma dos afagos… nada disso é vício nem aventura, são reminiscências do que jamais se acabará, nem mesmo por teimosia ou insegurança.
E é por isso que se você não é Fernando Pessoa, não escreva. O sangue sifilítico de Nietzsche escrito em cartas sujas jamais justificará o cigarro com marcas de batom, nem as leituras e citações que rasgam as madrugadas sonolentas na hora mais escura da noite. Mesmo que, preta, teima em dormir para não ver a aurora, sob efeito da Lua, sob efeito do medo do perdão, sob o efeito de Áries.
O sangue escrito não justifica sequer o beijo no rosto, o espelho e muito menos o câncer e a depressão porque todos estão fartos de semideuses, não quero cigarros desta tabacaria!

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O Relógio Ficou Sobre a Mesa

O relógio ficou sobre a mesa. Lá haviam copos vazios, sujeira, comida e corpos a falar. Lá ficou também a vergonha e foi embora o coração. Só havia lugar para a cegueira, pois a frieza daquela noite fora a última. Do jeito que estava não dava mais para continuar, se sentia tão fraca, abatida, gelada... mas haviam olhos selvagens à espreita e quando estes a fitaram se sentiu quente, sóbria, puta... E se sentindo puta esvaziou o copo com destilado, tomou a bolsa com maquiagem, tirou o relógio e o pôs sobre a mesa. Sem nada dizer, levantou-se como quem vai ao banheiro, sem olhar na cara dele: o prenúncio que palavra nenhuma sairia novamente daqueles lábios que agora estavam vermelhos. Atrás dela foi a outra, na mesma direção.
O corpo dele permaneceu lá falando, bebendo fermentados, gargalhando alto e arrotando. Percebeu que ela saiu, mas não se importou. Encheu novamente o copo de cerveja deixando uma boa quantidade de espuma e tomou dois goles. Acendeu um cigarro com o isqueiro ao seu lado na mesa, deu um trago e em seguida fez uma piada fazendo todos ao redor rirem. Sentiu-se bem. Olhou as horas no relógio dela e dessa vez ficou apenas calado, não ouvia o que os outros estavam dizendo, mas não sabia exatamente o que estava fazendo quieto e absorto.
As coisas aqui parecem estar acontecendo e mudando rápido demais.
Olhando-se no espelho ela viu olhos diferentes, que tinham até cores. A maquiagem retocada, o pensamento de que não precisariam mais suportar e fingir que não sofrem, um sorriso tímido no canto direito da boca. Baixou a cabeça e quando levantou novamente se olhou no espelho e estava chorando. 
Maquiagem borrada.
Sentada no vaso tampado com a porta do cubículo entreaberta ela dobrou as pernas e chorou baixo. Manchou o pulso com batom vermelho. Sentia-se culpada, culpabilizada, não lhe entrava na cabeça que esse assunto era superestimado, pois se importava muito com isso, lhe doía muito para não se importar; apesar de fingir que não dava a mínima a fim de parecer emocionalmente melhor aos outros fosse habitual.
A que vinha atrás entrou e deu de ombros ao passar por ela, sua urina quebrou o silêncio do ambiente. Do boxe ao lado ouviu o barulho da mulher se enxugando e pensou se seria muito rude pedir para conversar, decidiu que só falaria se ela puxasse conversa e lá permaneceu imóvel, mas irrequieta por dentro. 
Não aguentou e ao vê-la passando levantou-se em direção à porta. A outra se olhava no espelho, cutucava a sobrancelha.
— A porta está trancada.
— Ah, oi... Sim, mas que tem?
— Continuará trancada.
Olhar safado, sorriso de canto.

Ele continuou a olhar o relógio, dessa vez estava contando o tempo. Ela estava demorando. Nenhuma mulher na mesa e as risadas estavam mais altas. Queria rir, mas tinha preguiça. Só conseguia pensar se aconteceria mais uma vez, mas quem era ele para reclamar?

Não foi só o pulso que ficou manchado de batom e nenhuma das duas fez questão de limpar nada. Ela voltou para buscar o relógio, mas ao ver a silhueta do homem voltou atrás e decidiu deixar lá mesmo.
— Que horas são?
— Não interessa.
— Mas eu quero saber.
— Não vou dizer. Me dá teu celular.
Foram para casa e enquanto transavam a mulher, com dois dedos em sua boceta e a boca perto do ouvido enquanto lambia o pescoço:
— Me chama com o nome dele.
Ela estranhou e por um momento de susto quase se desconecta do que estava sentindo, porém o seu tesão volta do lapso muito mais intenso, seu corpo vermelho e quente se contorce.
— Você já fudeu com ele?
— Já.
— Foi gostoso?
— Muito.
— Você quer o pau dele?
Silêncio e gemidos.
— Fala, sua puta.
— Quero.
— Aonde?
— Em você...
— Em mim? Você quer que ele me coma também?
— Uhum...
— Em mim aonde? Fala aqui pra mim...
Ela se vira um pouco para beijar-lhe a boca:
— No seu cuzinho... enquanto eu chupo sua boceta... chupo o saco dele, como o cuzinho dele...

— Não tinha margarina suficiente, usei óleo, espero que não se importe.
— Tudo bem.
Ela se aproxima e dá um abraço por trás em sua namorada que toma uma xícara de chá.
— Tá bom, agora pode me soltar.
— O que houve?
— Nada. Só come isso aí, é a última vez que faço café pra você. Quando você terminar de comer quero que vá embora daqui.
— Beleza.
Ela comeu, estava com fome. Odiava o sabor de ovos fritos com óleo, mas dessa vez nem se importou. Ela dar de ombros à situação não causou surpresa a nenhuma das duas.
Saiu sem tomar banho, não queria usar a água dela.
— Você tá esquecendo isso ali, leva essa porcaria também. – disse apontando para uma miniatura do John Lennon ao lado da televisão.
— Ah, certo.
Foi para a casa de um amigo, mas não quis falar sobre o assunto. O barulho do bebê chorando à noite não lhe deixava dormir, o ambiente de casamento recente, aquele cheiro de casal no ar... levantou-se da cama e se sentou no chão, enfim chorou, seu choro era baixo e fazia seu peito doer muito. Havia parado de fumar, mas queria um cigarro. Saiu do apartamento novo e foi para a varanda, adormeceu com o nascer do sol, quando o primeiro raio lhe tocou a face molhada. Acordou com o chamado do amigo que parecia preocupado, mas por lhe conhecer não perguntou nada, sabia que ficava muito irritada que perguntassem como estava se sentindo.
Odiava o sabor de ovos fritos com óleo e dessa vez quis cuspir. O café estava fraco. E o sorriso da mulher de seu amigo, a qual nem lembrava o nome, era branco demais, doía na vista. E seus dentes lívidos teimavam em aparecer, não paravam quietos dentro daquela boca. 
Era o seu único amigo, o qual insistiu em permanecer com ela que tinha o incrível dom de afastar todas as pessoas. 
Achava bebês feios e o filho de seu amigo, em especial, era horroroso. 
— Eu vou embora.
— Mas você não vai ficar para almoçar?
— Não. Você pode me pagar aqueles vinte reais?
— Claro, toma aqui.

Saiu e tomou rumo para a casa dele. Será que ele guardou o seu relógio? Percebeu que não fazia a mínima ideia de que horas eram e todos os relógios de rua do Centro da cidade haviam sumido. O desvio que fez pela praça só serviu para aumentar o tempo de sua viagem, aqueles pombos fediam e os velhos eram feios. As pessoas que passavam suavam e cheiravam mal, apressadas. Ela caminhou lentamente e decidiu pegar um táxi, a corrida dali até a casa dele deveria dar uns vinte reais. À medida que se aproximava da residência universitária ia sentindo um torpor esquisito e seu sexo pulsava lentamente com o calor na espinha. Sua mochila estava suja.
Chegando lá, sentiu-se puta mais uma vez, bateu na porta e ninguém atendia. Um vizinho aparece:
— Olha, acho que ele viajou. Tá tendo um encontro de Geografia em Belo Horizonte, o ônibus saiu hoje e ele foi, eu acho, sei lá.
— Ah, boto fé. Você tem cigarro aí?
— Não, eu não fumo.
— Ah, pode crer.
Lembrou de seu pai:
— “Se você voltar aqui eu juro que mato você, nunca mais apareça na minha frente. Só quero saber de você se for pra receber a notícia que você está enfim morta. Agora vá embora daqui.”
Nem sabia quantas vezes lhe mandaram ir embora. Afinal era ela que afastava as pessoas ou as pessoas que lhe afastavam a mandando ir embora, sair de perto?  Pôs-se a perguntar.
Sentiu falta do seu relógio para saber que horas eram. Sentiu-se livre, leve, excitada, mas sentia-se bem?
Entrou novamente em um taxi, não tinha dinheiro.
— Vai pra onde?
— Me leva pra onde você quiser.
— Saia.


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

As Horas I







Pois que os badalos me temem
porque as horas são tão largas.
E a maravilha que me acerta
se dissolve nos ponteiros 
enquanto com o tempo...
flerta.