O relógio ficou sobre a mesa. Lá haviam copos vazios, sujeira, comida e corpos a falar. Lá ficou também a vergonha e foi embora o coração. Só havia lugar para a cegueira, pois a frieza daquela noite fora a última. Do jeito que estava não dava mais para continuar, se sentia tão fraca, abatida, gelada... mas haviam olhos selvagens à espreita e quando estes a fitaram se sentiu quente, sóbria, puta... E se sentindo puta esvaziou o copo com destilado, tomou a bolsa com maquiagem, tirou o relógio e o pôs sobre a mesa. Sem nada dizer, levantou-se como quem vai ao banheiro, sem olhar na cara dele: o prenúncio que palavra nenhuma sairia novamente daqueles lábios que agora estavam vermelhos. Atrás dela foi a outra, na mesma direção.
O corpo dele permaneceu lá falando, bebendo fermentados, gargalhando alto e arrotando. Percebeu que ela saiu, mas não se importou. Encheu novamente o copo de cerveja deixando uma boa quantidade de espuma e tomou dois goles. Acendeu um cigarro com o isqueiro ao seu lado na mesa, deu um trago e em seguida fez uma piada fazendo todos ao redor rirem. Sentiu-se bem. Olhou as horas no relógio dela e dessa vez ficou apenas calado, não ouvia o que os outros estavam dizendo, mas não sabia exatamente o que estava fazendo quieto e absorto.
As coisas aqui parecem estar acontecendo e mudando rápido demais.
Olhando-se no espelho ela viu olhos diferentes, que tinham até cores. A maquiagem retocada, o pensamento de que não precisariam mais suportar e fingir que não sofrem, um sorriso tímido no canto direito da boca. Baixou a cabeça e quando levantou novamente se olhou no espelho e estava chorando.
Maquiagem borrada.
Sentada no vaso tampado com a porta do cubículo entreaberta ela dobrou as pernas e chorou baixo. Manchou o pulso com batom vermelho. Sentia-se culpada, culpabilizada, não lhe entrava na cabeça que esse assunto era superestimado, pois se importava muito com isso, lhe doía muito para não se importar; apesar de fingir que não dava a mínima a fim de parecer emocionalmente melhor aos outros fosse habitual.
A que vinha atrás entrou e deu de ombros ao passar por ela, sua urina quebrou o silêncio do ambiente. Do boxe ao lado ouviu o barulho da mulher se enxugando e pensou se seria muito rude pedir para conversar, decidiu que só falaria se ela puxasse conversa e lá permaneceu imóvel, mas irrequieta por dentro.
Não aguentou e ao vê-la passando levantou-se em direção à porta. A outra se olhava no espelho, cutucava a sobrancelha.
— A porta está trancada.
— Ah, oi... Sim, mas que tem?
— Continuará trancada.
Olhar safado, sorriso de canto.
Ele continuou a olhar o relógio, dessa vez estava contando o tempo. Ela estava demorando. Nenhuma mulher na mesa e as risadas estavam mais altas. Queria rir, mas tinha preguiça. Só conseguia pensar se aconteceria mais uma vez, mas quem era ele para reclamar?
Não foi só o pulso que ficou manchado de batom e nenhuma das duas fez questão de limpar nada. Ela voltou para buscar o relógio, mas ao ver a silhueta do homem voltou atrás e decidiu deixar lá mesmo.
— Que horas são?
— Não interessa.
— Mas eu quero saber.
— Não vou dizer. Me dá teu celular.
Foram para casa e enquanto transavam a mulher, com dois dedos em sua boceta e a boca perto do ouvido enquanto lambia o pescoço:
— Me chama com o nome dele.
Ela estranhou e por um momento de susto quase se desconecta do que estava sentindo, porém o seu tesão volta do lapso muito mais intenso, seu corpo vermelho e quente se contorce.
— Você já fudeu com ele?
— Já.
— Foi gostoso?
— Muito.
— Você quer o pau dele?
Silêncio e gemidos.
— Fala, sua puta.
— Quero.
— Aonde?
— Em você...
— Em mim? Você quer que ele me coma também?
— Uhum...
— Em mim aonde? Fala aqui pra mim...
Ela se vira um pouco para beijar-lhe a boca:
— No seu cuzinho... enquanto eu chupo sua boceta... chupo o saco dele, como o cuzinho dele...
— Não tinha margarina suficiente, usei óleo, espero que não se importe.
— Tudo bem.
Ela se aproxima e dá um abraço por trás em sua namorada que toma uma xícara de chá.
— Tá bom, agora pode me soltar.
— O que houve?
— Nada. Só come isso aí, é a última vez que faço café pra você. Quando você terminar de comer quero que vá embora daqui.
— Beleza.
Ela comeu, estava com fome. Odiava o sabor de ovos fritos com óleo, mas dessa vez nem se importou. Ela dar de ombros à situação não causou surpresa a nenhuma das duas.
Saiu sem tomar banho, não queria usar a água dela.
— Você tá esquecendo isso ali, leva essa porcaria também. – disse apontando para uma miniatura do John Lennon ao lado da televisão.
— Ah, certo.
Foi para a casa de um amigo, mas não quis falar sobre o assunto. O barulho do bebê chorando à noite não lhe deixava dormir, o ambiente de casamento recente, aquele cheiro de casal no ar... levantou-se da cama e se sentou no chão, enfim chorou, seu choro era baixo e fazia seu peito doer muito. Havia parado de fumar, mas queria um cigarro. Saiu do apartamento novo e foi para a varanda, adormeceu com o nascer do sol, quando o primeiro raio lhe tocou a face molhada. Acordou com o chamado do amigo que parecia preocupado, mas por lhe conhecer não perguntou nada, sabia que ficava muito irritada que perguntassem como estava se sentindo.
Odiava o sabor de ovos fritos com óleo e dessa vez quis cuspir. O café estava fraco. E o sorriso da mulher de seu amigo, a qual nem lembrava o nome, era branco demais, doía na vista. E seus dentes lívidos teimavam em aparecer, não paravam quietos dentro daquela boca.
Era o seu único amigo, o qual insistiu em permanecer com ela que tinha o incrível dom de afastar todas as pessoas.
Achava bebês feios e o filho de seu amigo, em especial, era horroroso.
— Eu vou embora.
— Mas você não vai ficar para almoçar?
— Não. Você pode me pagar aqueles vinte reais?
— Claro, toma aqui.
Saiu e tomou rumo para a casa dele. Será que ele guardou o seu relógio? Percebeu que não fazia a mínima ideia de que horas eram e todos os relógios de rua do Centro da cidade haviam sumido. O desvio que fez pela praça só serviu para aumentar o tempo de sua viagem, aqueles pombos fediam e os velhos eram feios. As pessoas que passavam suavam e cheiravam mal, apressadas. Ela caminhou lentamente e decidiu pegar um táxi, a corrida dali até a casa dele deveria dar uns vinte reais. À medida que se aproximava da residência universitária ia sentindo um torpor esquisito e seu sexo pulsava lentamente com o calor na espinha. Sua mochila estava suja.
Chegando lá, sentiu-se puta mais uma vez, bateu na porta e ninguém atendia. Um vizinho aparece:
— Olha, acho que ele viajou. Tá tendo um encontro de Geografia em Belo Horizonte, o ônibus saiu hoje e ele foi, eu acho, sei lá.
— Ah, boto fé. Você tem cigarro aí?
— Não, eu não fumo.
— Ah, pode crer.
Lembrou de seu pai:
— “Se você voltar aqui eu juro que mato você, nunca mais apareça na minha frente. Só quero saber de você se for pra receber a notícia que você está enfim morta. Agora vá embora daqui.”
Nem sabia quantas vezes lhe mandaram ir embora. Afinal era ela que afastava as pessoas ou as pessoas que lhe afastavam a mandando ir embora, sair de perto? Pôs-se a perguntar.
Sentiu falta do seu relógio para saber que horas eram. Sentiu-se livre, leve, excitada, mas sentia-se bem?
Entrou novamente em um taxi, não tinha dinheiro.
— Vai pra onde?
— Me leva pra onde você quiser.
— Saia.