Havia uma espécie de necrotério no ambiente onde me encontrava, aliás era uma espécie de necrotério, disforme. Contudo, um necrotério em meio a um jardim verde, sem rosas ou qualquer coisa que não fosse mato ou grama. Era um dia claro, porém o horizonte era nublado, mas parecia tão distante e parecia chover ao longe, além do mais algo mantinha minha cabeça erguida a olhar para essa chuva ao longe com a boca salivando, minha língua dançando, me fazendo engolir saliva sem parar... E eu olhava, como que me esgueirando acima de um muro, aliás uma cerca com mato, entretanto era um campo aberto, o horizonte era aberto. Havia um muro de concreto alto, porém bem ao longe, quase perto da chuva, um pouco além do tempo nublado, e onde eu estava fazia sol e o céu estava limpo. Nada, além dos corredores onde estava, parecia me nortear, guiava-me apenas pelo labirinto que se inscrevia aos dois lados, sempre abaixo.
— Estou eu em uma montanha?
Esse pensamento povoou minha mente por uns dez minutos enquanto continuava seguindo em frente nos corredores abertos com o foco na chuva ao horizonte, agora já com o pescoço levemente à esquerda, mas com o queixo sempre erguido para poder enxergar mais acima. Parecia-me limpidamente que eu estava indo abaixo, cada vez mais abaixo, sempre abaixo, mas algo me mantinha de cabeça erguida, aliás algo me mantinha assim para não morrer afogado!
— Meu Deus! O que é isto?!
Minha garganta doía e eu me sentia sufocado, queria me sentar, mas não tinha onde sentar, meus pés escorregam e de repente sinto minhas unhas arranhando o chão, uma mão no pescoço tentando rasgá-lo a todo custo para deixar o ar entrar. Esgueiro-me pelo chão de azulejos brancos já com as unhas arrancadas, os dedos esfolados, escorregando para o fundo. Os corredores ficando cada vez mais íngremes! A cabeça levantada e as lágrimas em desespero a correrem em meu rosto como o sangue corre em minhas veias, as feições deformadas e um grito de ardor e agonia que não consegue sair, estou morrendo! Sufocado...
— Sufocado pela minha própria saliva? E que gosto horrível é esse em minha língua?
Minha mão direita continua rasgando meu pescoço. E a chuva parece cada vez mais longe, tão linda... Em meio à angústia do momento tudo que consigo desejar é beber dessa chuva e lavar meu rosto com a chuva forte, sinto que estou me afogando... Os corredores encolhem cada vez mais e então viram um buraco, as vigas amarelas caem todas e juntas com todo o mato e grama são sugadas por um buraco de diâmetro ínfimo transformando tudo ao meu redor em uma terra podre. Estou agora caindo, caindo abruptamente, deslizando em um poço de terra com fezes. Os gritos conseguem sair e me soam como gritos de alguém que está sendo estuprado por Satã no Inferno, com toda a quentura e dor imagináveis. O corpo sendo dilacerado é o que consigo sentir, sinto a carne de minhas duas mãos sendo rasgadas naquela terra imunda das paredes de bosta e gritos de dor ecoam por todo o ambiente.
— Quero morrer! Quero morrer!
O desespero toma conta de meu ser então a cair no infinito de imundície, o corpo sendo rasgado e perfurado por dezenas de agulhas grossas que levam pedaços de minha carne. O sangue começa a congelar dentro de mim, tudo começa a ficar frio. Os meus olhos, porém, parecendo alheios ao que acontece, permanecem focados no feixe de luz na boca do poço que dá exatamente na chuva ao longe, no horizonte, no mais-além. Encontro-me então em dois extremos do infinito e me pergunto, já acostumado à situação após a dor inicial que açoitava meu corpo e minha consciência, se já estou de fato morto. Chego à conclusão que não, que a morte não é dolorosa, que a morte não é de jeito nenhum essa perspicácia imunda. Devo estar sendo abortado, do útero de Gaia, é isso, abortado do útero de Gaia. Começo a pensar, ainda me agarrando às paredes fétidas e escorregando para o fim se então não tem fim?... Nem mesmo me ocorreu, percebo, a olhar para baixo, fascinado com a visão do horizonte... E então olho e o que vejo é inominável, chega a ser até inefável e um turbilhão de vômito é inevitável. O vômito desce pelas paredes, juntando-se aos meus restos mortais e a carnificina de minhas mãos. Estou completamente nu e imundo. Pergunto-me onde minhas roupas foram parar. Desejo com tudo que ainda me resta que jamais chegue ao fim desse poço, dessa fossa. Desejo mais que morrer, desejo passar a eternidade ali caindo e sendo rasgado até onde possa aguentar ensurdecido por meus gritos de desespero e impregnado pelas fezes e o vômito que escorre de minhas entranhas ininterruptamente. Olho o horizonte, cada vez mais distante, cada vez mais complexo de se imaginar, cada vez mais doloroso de se contemplar, cada vez mais impossível de se aceitar. Mas o que seria doloroso nesse momento? Com certeza a ideia de que existe uma chuva ao longe em meio a um tempo nublado dói um milhão de vezes mais que a dor lancinante que assola meu corpo nu e fétido neste momento.
— Eu não quero morrer... Eu não quero morrer aqui...
Neste momento parece que Satã me abraçou e fez peso em minhas costas que começam a doer sem que possa ter noção da dor inimaginável que sinto. Começo a sentir fome e o vômito que vem a cada dois minutos de queda passa a ser meu alimento. Parece que não tenho mais estômago. Nem sinto mais minhas mãos rasgadas na parede, nem mesmo o cheiro imundo de todo o ambiente. Deve ser assim a morte, a perda lenta e podre de cada sentido ridículo. Depois da fome e das fezes que começam a escorrer de meu corpo não sinto mais nada, parece que estou em algum lugar indefinível, em um universo paralelo, feito só de eletricidade. Entretanto a chuva ao longe parece não desaparecer, acho que enfim estou com o desejo realizado, estou passando a eternidade aqui, nessa queda, lentamente tudo vai perdendo o sentido e nem lembro mais meu nome ou o que quer que seja que me defina. A contemplação é a única coisa que me resta, estou perdendo, estou desfalecendo, caindo aos pedaços, não consigo mais resistir... Um último grito:
— A queda!
Tudo se foi.
Estou agora morto.
Não! Não posso estar morto, estou boiando no mar e acima o que vejo é um imenso espiral rosado que exala um odor fétido.
— Mais o que diabos é isto, afinal!?
Encontro uma chave em meu bolso. Minhas roupas estão de volta, mas o que isso significa e o que aconteceu? Não posso ter morrido, lembro infelizmente de cada detalhe do que aconteceu e enfim e meu corpo começa a doer. Procuro e não encontro nenhuma marca e meus dedos intactos. Lembro-me da chuva no infinito, ah, a chuva, como queria um pouco daquela chuva agora... Daria tudo. Ainda flutuando no mar me pergunto o que está acontecendo. Não aguento mais essa situação toda, o que significa isto?! É alguma espécie de sonho doentio?
— Deus, por quê?
Seguro a chave prata em minha mão esquerda e o mar começa a se revoltar, ondas imensas e parece que vou morrer afogado, de novo... Aliás, morri afogado? Tudo se transforma em um grande redemoinho. O desespero começa a me assolar novamente, não consigo me desvencilhar, resolvo me entregar, não aguento mais essa situação toda. Os olhos fechados e a chave firme em minhas mãos. A coisa parece se repetir inteira, dessa vez sem as fezes. Mas o que está acontecendo? Caio sentado no mesmo lugar onde estivera antes e enfim desisto de tentar entender qualquer coisa que seja. A chave ainda está em minha mão. Sigo nos corredores e ao lado esquerdo começam a aparecer gavetas mortuárias, cada uma com uma fechadura. Paro de caminhar em frente e pareço nem sequer lembrar-me da chuva ao horizonte. Decido enfiar a chave em alguma das fechaduras nas gavetas, penso se estou morto.
— Então, deve ser aqui onde ficam os corpos de todos os mortos.
As gavetas em salmão contrastam com a cor amarela das colunas que sustentam os corredores sem paredes à direita. Procuro meu nome, mas não consigo lembrar meu nome, o esqueci, isso é inaceitável! Então quem sou agora? De repente penso em como isso é irrelevante, não há ninguém aqui além de mim. Por que nominar? Isso não tem serventia alguma. Enfio a chave em uma fechadura qualquer, pelo nome parece ser uma mulher, uma luz verde acende, abaixo lê-se “morta”. Minha chave mata as pessoas? Isso são pessoas? Se então mata, o que são isso senão gavetas fúnebres? Enfio a chave em mais duas outras fechaduras, pelo nome mais duas outras mulheres, a luz verde acende-se mais duas vezes: “morta” e “morta”. Não consigo mais entender nada e decido parar ali mesmo e pensar. Permaneço por 30 minutos a pensar e o silêncio de meus pensamentos são perturbados por um som de mulheres discutindo. Olho à direita sobre o ombro e três mulheres parecendo agitadas aparecem. Ao me verem ficam em silêncio e seus olhos esbugalhados fitam minha mão direita, onde está a chave. A loira de meia idade se aproxima:
— Foi você!
O medo toma conta de mim, o que fazer agora? Ela avança como um lobo faminto em sua animosidade, acompanhada das outras duas, uma de cabelos castanhos com cerca de 20 anos e uma negra com seus 60 anos. Ao chegarem perto instintivamente desfiro um soco que acerta as têmporas da loira que cai de súbito morta, perplexo levo as mãos à cabeça e as duas mulheres permanecem imóveis com seus olhos esbugalhados. Falo para não se aproximarem, mas elas parecem não entender o que falo. Elas então rompem o silêncio e me dizem para não fazer nada com elas, só estão desesperadas porque as tirei da morte e as trouxe para cá. Não entendo e mais uma vez procuro não entender. Tento argumentar que não entendo o que acontece, mas elas parecem não entender o que falo, pareço falar em outra língua. Elas param de falar e tentar entender, voltando ao silêncio. A mais nova, de cabelos castanhos, começa a tirar a roupa, seios bonitos e um clitóris grotesco, enorme, com uns 5cm de comprimento. A negra então diz para voltar e passar a chave na porta de sua filha, diz que ela está agonizando há dias, que não aguenta morrer, por isso devo acabar com o seu sofrimento de mãe, começa a se desesperar, seus gritos agudos de choro e sofrimento ressoam por todo o ambiente fazendo os pardais calarem-se.
— Devo estar no inferno.
A garota deita-se em cima da loira de meia idade morta no chão e como um súcubo louco tira desesperadamente sua pouca roupa, caindo de boca em sua vagina rosada e de pêlos castanho claro, sugando-a inteira, de dentro de sua pequena vagina com um clitóris enorme começa a sair uma glande imensa e então um pequeno pênis, ela posiciona o cadáver lívido ainda fresco com as pernas abertas em cima de seus ombros delicados e estoca entre as pernas da morta, lânguida, se contorcendo em prazer, seu corpo treme inteiro. Ela lambusa a morta inteira com sua saliva que jorra da boca como um vômito.
— Devo estar no inferno.
A negra grita ainda mais alto e começa, então, a rasgar o próprio rosto com as unhas e arrancar os próprios dedos a dentadas, berrando sobre sua filha, rasgando sua roupa e cortando a própria pele escura com a mão esquerda enquanto arranca os dedos da direita.
— Devo estar no inferno.
Atormentado pela imundície que presencio começo a me afastar, estupefato pela visão de horror que contemplo. A negra me segue e a garota geme ainda mais alto, agora mordendo o pescoço do cadáver loiro e com um pedaço de seio na mão direita ensanguentada. Com a mão esquerda começo a furar meus olhos a procurar o portão com meu nome para dar um fim a essa merda toda. Enfim minhas palavras são compreendidas enquanto digo:
— Não aguento esse sofrimento, eu quero morrer! Quero voltar para o lugar de onde vim!
A negra se contorce inteira e vem me seguir, eu já correndo e ela grita:
— Sofrimento?! Sofrimento?! Você não sabe o que é sofrimento! Você não faz a mínima ideia do que seja sofrimento, seu idiota! Você não está em meu corpo para saber o que é sofrimento! Dê-me essa chave! Dê-me a chave! Dê-me a chave!
Arranco meus dois olhos enquanto berro agudamente:
— Sofrimento! Sofrimento! Sofrimento! Sofrimento! Sofrimento!...
Quando acordo ainda consigo me ouvir gemendo alto a palavra sofrimento em meio a madrugada, em minha cama de solteiro, completamente ensopado de suor. O relógio marcava 1h25min e demorei apenas cinco minutos para voltar a dormir.