segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Leminski (?), um psicólogo empreendedor

Enquanto caminhava nua pelo pequeno apartamento pintado a cal um resto de comida esfriava no balcão da cozinha. Ninguém comeria mesmo: lixo de três semanas espalhados em sacolas de supermercado. Em um canto do quarto roupa suja amontoada, amassada, fedida e cheia de fluidos; ao menos abrigavam os escorpiões e as baratas à noite. 
Em cima das roupas um livro do Leminski que comprei por quinze reais completava o cenário. Ah, aquele bigode horroroso! Só consigo imaginar uma tomada de um curta universitário: o ângulo trêmulo pegando o livro laranja que quase brilha no escuro em cima das roupas e ao fundo a silhueta de uma mulher nua fumando encostada na janela, uma silhueta assim parecida com a dela, a mulher que eu amo, que fode comigo e que eu tenho profundo desejo de fazer filhos e filhas que devem ser gerados e geradas de uma transa com beijo de olhos abertos: uma bunda saliente, mas com um corpo não tão pequeno (sem tatuagens, por favor, universitários do Benfica!).
Tem uma letra de música que diz que lugar de poesia é na calçada e que um livro de poesia na gaveta não adianta nada. Mas que audácia! Eu culpo Sócrates, até porque depois da roda e do fogo o que não é espetáculo (quem disse essa frase maravilhosa foi um amigo meu, Sócrates é um grifo meu)?
No momento me vem a imagem de um beijo no cu rosado no meio da bunda morena seguido de uma lambida naquela boceta de dezessete anos toda melada de uma substância quase doce.
Isso me atrapalhou a escrita, esqueci completamente do que estava escrevendo porque parei uns minutos pra bater punheta e agora que gozei não tenho mais porque escrever.
Enfim, cá estou novamente depois de algumas horas. Acabo de ver um filme (Um Dia de Fúria) e levei uns três tiros, dois no peito direito e estou terminando de morrer ouvindo Sérgio Sampaio e bebendo o resto de carménère que ficou do sábado junto com a pia alheia quebrada.
Meus livros estão cheios de poeira, assim como eu e tudo nessa casa: a mesa do computador, o armário que ganhei e nunca instalei na parede da cozinha acima da pia, o ventilador que me dá alergia e o chão que de tão sujo faz lama quando saio com os pés molhados do banheiro.
Mas o que quero falar mesmo é que culpa tenho eu se depois de cinco anos de faculdade de Psicologia é incapaz a um ser humano saudável continuar com o peito em chamas? Mesmo que os olhos verdes dela me façam queimar eu me sinto um bêbado e é muito ruim sentir-se bêbado se você está sóbrio. 
Semana passada minha orientadora chateou-se comigo porque eu disse que se for pra ganhar dinheiro eu prefiro vender coco e que ganhar dinheiro é muito fácil. Ontem eu fui a um show “gratuito” do Titãs que tinha uma área vip onde contei seis pessoas negras e o prefeito da cidade, cuspi neles durante Bichos Escrotos e cantei todos os versos esbravejando contra os cidadãos civilizados que me olhavam horrorizados. O que me levou a fazer isso? Na mesma semana fui a outro show gratuito e presenciei uma mulher louca fazendo tudo o que a esquerda universitária mais repudia. Eu ri de tudo porque estava engraçado sim e porque eu estava completamente bêbado. Ri também porque tinha uma mulher branca aparentemente rica ao meu lado e algo me levou a querer incomodá-la: 
— Me dá um gole da tua cerveja?
— Eu? — Cara de nojo.
— É, me dá?
— Ah, toma, pode terminar.
Bebi e reparti com os amigos e ela surge com outra, me dirijo ao amigo.
— Ela comprou outra, pede lá a ela de novo, bora encher o saco dela, quando ela comprar outra eu peço e depois tu de novo.
— Me dá um gole da tua cerveja?
Nesse momento eu me viro e aguardo a cerveja.
— Doido, ela me deu cinco conto pra comprar uma cerveja. Caralho, ela me pagou pra pra não incomodar ela!
Rimos bastante.
E o que diabos me levou a incomodá-la além do fato de ela ser loira, branca e parecer rica?
Mês passado vi três "grupos" PAGOS e caros sobre Foucault na cidade, eu queria saber que Foucault é esse que essas pessoas andam lendo (será mesmo que leem?) e usam pra ganhar dinheiro.
"A pessoa tem que ganhar seu dinheiro mesmo".
É, e acho que por isso mesmo eu tenho é medo desse povo, até mesmo minha terapeuta chateou-se comigo quando disse que psicologia empreendedora é ridículo e passou quase 10 minutos da sessão discutindo comigo sobre o assunto, aliás, meio que se defendendo, ela literalmente me interrompeu pra fazer um discurso, no que eu encerrei com um "você está sendo ridícula". Eu devo a ela mais de duzentos reais e no dia que fui decidido a encerrar o processo para conter gastos tive uma dor de barriga assim que cheguei ao consultório e assim que saí, o estrago no banheiro da clínica dela foi grande.
Daqui a alguns meses eu vou me formar, o primeiro da família e a mesma família que mal sabe do que se trata o que faço da vida. Saí de casa com dezesseis e vou me formar com vinte e dois. O que eu queria mesmo fazer era Filosofia e sempre quis ser professor.
Na faculdade tem um monte de gente branca fazendo pose de rica, eu me sinto em alguma esquete do Porta dos Fundos (que por sinal não tem a menor graça), pra todo lado que olho vejo um Gregorio Duvivier ambulante e pessoas mudando a vida de pessoas, fazendo o bem, fazendo a diferença, ou pelo menos achando que assim o fazem ou que são importantes na vida de alguém. Tenho muitos colegas especiais e que deixam legados para o curso, inclusive com textos e postagens nas redes sociais divulgando partes de seus TCCs sobre grandes assuntos da sociedade brasileira. Discutimos bastante sobre abordagens e sobre como ganhar dinheiro, como ser psicólogo, como ser uma boa pessoa.
Há mais ou menos um ano eu caguei bem atrás do bloco e assim que me formar pretendo defecar de novo, mas bem na frente do bloco. Representando muito bem a escola pública: o primeiro aluno egresso de escola pública estadual no curso inteiro junto com um colega de sala da mesma turma, isso depois de três anos de existência de curso. Foram necessários quatro vestibulares para entrarem dois. Discutimos muito semestre passado sobre como ganhar dinheiro e valorizar a profissão.
Tenho na ponta da língua uma tonelada de insultos fantasiados de argumentos filosóficos e epistemológicos sobre a conjuntura social brasileira e as teorias psicológicas. Eu posso discutir sobre qualquer assunto que envolva Psicologia e assim o faço, só me chateio porque durante cinco anos conto nos dedos de uma mão uma discussão que realmente se faça como tal, em que não se conduza de maneira a ser uma espécie de disputa, porque que surpresa, eu não me importo nem um pouco com isso! Mas infelizmente eu não sei conversar com playboy.
Eu sou o melhor psicólogo que conheço, mas nunca conheci nenhum que preste e temos aos montes: mais de uma dezena de faculdades de Psicologia na cidade de Fortaleza.
Puta que pariu! Faltam algumas semanas pro Estado me CONCEDER o direito de ser chamado de psicólogo. Puta que pariu! E um dia desses eu estava aprendendo a mexer uma massa, a como pegar em uma enxada, a como plantar e colher batata, milho e feijão, puxando água e tomando banho de cuia. Antes de entrar na faculdade eu só tinha conhecido mais ou menos uma dúzia de pessoas brancas e andado de carro apenas uma vez na vida e do nada todo mundo ao meu redor é branco e todo mundo tem carro. Que diabo é isso?!
É muito difícil encontrar alguém que entenda que quando se fala não se busca valor de nada, não se busca hierarquia, que saiba que é tipo fumar, experimentar o caos. A gente fala demais e eu gosto de falar, mas gosto sobretudo de ficar em silêncio e quieto pra não espantar os devires. E dificilmente encontro alguém que queira ficar em silêncio comigo. Ao meu redor tem muita gente feia e chata, o que não significa dizer que não gosto de suas companhias, mas sim, não faço questão, nunca fiz questão de estar ao lado de gente que não conheço e que não me conhece. É difícil conviver com estudantes de psicologia e em duas semanas a turma será fotografada para a placa: eu não vou, eu não tenho dinheiro pra isso, 350 reais é muito dinheiro.
Eu não quero ser psicólogo, eu não quero emprego, eu não quero trabalhar, eu não quero dinheiro, eu não quero o bem, eu não quero mudar nada, eu não quero ser importante na vida de ninguém, eu não quero deixar legado nenhum, eu não quero entrar pra história. Nada disso me interessa e Durango Kid continua existindo apenas no gibi: eu não quero me misturar com quem confunde potência com poder, só me interessa o silêncio das palavras que hesitam.
Mas isso não significa que eu não goste, apenas vejo isso tudo como consequências naturais de coisas que acontecem na vida das pessoas simplesmente por elas existirem. Se algo realmente me interessa é apenas ter um terreno suficientemente grande para comer o que eu mesmo plantar e que não haja barulho a não ser o meu e até isso é absurdo, como é que o chão é de alguém?!
Meus filhos serão playboys, eu sei que serei rico, que serei bem sucedido em qualquer coisa que eu fizer. Isso me causa angústia, mas vida que segue. Poderia dizer que gostaria que fosse assim tão fácil, mas eu não gostaria. Eu não entendo nada do que vocês falam, exatamente porque agora sou como vocês, até um diploma eu vou ter no final do ano. Eu tenho sogra, sogro, companheira de olhos verdes filha de pais separados que estudou a vida inteira em escola particular cheia de cartazes e ela é uma pessoa maravilhosa, vejam só. Aliás, eu não tenho nada disso, mas isso me ensinou até a gostar de ter família! Mas que ingrata surpresa, porque eu continuo sem entender nada do que vocês dizem!
Aquele bigode horroroso do Leminski, aquele bigode horroroso do Nietzsche, aquele bigode horroroso do Belchior. Eu queria também ter um bigode, mas nem barba eu tenho. Eu tenho uma cara de índio e eu acho massa: eu não pareço com absolutamente ninguém ao meu redor, eu não pareço com vocês!
E se eu escrevo é com sangue e nada além disso, eu como arroz com farinha e gosto; eu cuspo sangue e quando eu beijo é só com sangue e esperma próprio, eu sei do gosto do meu pau, do meu cu e do meu sêmen, mas eu não sei do gosto de um psicólogo, mesmo que este seja servido em fatias.
Isso só saiu porque as segundas-feiras são feriados para mim, mesmo que eu tenha uma reunião obrigatória ao meio dia. Eu nunca fui a nenhuma, ninguém me consultou acerca disso e eu tenho um currículo lattes bem gordinho, sei um monte de coisas e sou um cara chato, mas eu não quero nenhum dos seus holofotes.
Quando eu era criança tinha medo de vírus. Minha mãe deixava de comprar comida pra gente pra me comprar enciclopédias daquelas que vendem em bancas de revista e lápis faber castell. Com uns treze anos eu me dei conta disso e chorei. Eu não gosto de passar nas sessões de material escolar nos supermercados e lojas de departamento, eu não gosto de ter cadernos nem de escrever nada, eu gosto de ler, bastante, inclusive.
A maioria dos dias eu vou à faculdade somente para almoçar, quando saio das aulas sinto-me burro. Às vezes vou sem nem tomar banho, com o cabelo preso e não falo com ninguém.
— Valha, tu passa e nem fala aqui e vem sem tomar banho. — Risos.
Eu não respondi nada, mas pensei “eu venho aqui só pra almoçar, tô nem aí pra vocês”, mas ao mesmo tempo reparei que eu nunca tinha reparado nisso e que importância tem esse texto inteiro?
Eu não sei, quem sabe (eu sei)?