quarta-feira, 25 de junho de 2014

Filhas

— Eu quero morrer de câncer.
— Você não faz a mínima ideia do que está falando... nos vemos na próxima semana.
— Não adianta, eu não vou sair.
— Vai sim, vai sair agora. Por favor, saia.
Tentando mostrar indiferença apanha um cigarro e faz menção de acender.
— Apague, você não pode fumar aqui.
— Mas eu já disse, quero morrer de câncer e é isso que vou fazer. Não vai ser você que vai me impedir.
— O fato de você dizer que quer morrer de câncer não muda em nada você querer morrer de câncer, nem o fato de você estar sendo idiota e inconveniente, nem o fato de você não saber o que está falando. Além do mais, eu não preciso saber disso e nem me interessa saber.
— E se eu chupasse seu pau?
— Mas você não vai fazer isso.
— E por que não?
— Porque não vai.
— Quem disse?
— Eu estou dizendo.
— Percebeu que agora só eu estou perguntando e você respondendo?
— Tudo bem, agora você já pode sair, faça o favor. – Disse levantando-se e caminhando até a porta.
— Aposto que você tá de pau duro. – Disse antes de sair com um ar pueril e falsamente leviano.
Ele não pôde evitar olhar seu corpo balançando e não quis se importar com isso. Não estava de pau duro; e ela não olhou para trás, mas seu perfume ficou, bem como o cheiro de cigarro e do pequeno arroto que ela deu assim que passou pela porta.
Em casa, preparou um chá. Estava cansado. Sua ex-mulher havia telefonado, avisou a diarista quando chegou ao fim da tarde, era sobre sua filha. Ele não quis retornar. Fumando na varanda após tomar um chá de hortelã, pensava sobre as estrelas que via através da janela do apartamento. Naquele momento era o pensamento mais aleatório possível e não queria pensar em alguma outra coisa. Sentiu um cheiro ruim, era seu gato que teimava em não usar a maldita caixa de areia e sempre estava por perto. Não se irritou.

Na casa de um amigo estavam em um grupo de seis. Havia dois passando ao mesmo tempo na roda e quando um acabava alguém pegava seda e pedia a maconha e rapidamente enrolava e apertava outro. Não sabiam quantos haviam fumado, mas riam, pareciam felizes. Nenhum dos assuntos que puxavam durava mais do que quatro frases. Ela pensa, constrangida, em por que chorou quando saiu de lá, por que não conseguiu olhar para trás e desafiá-lo mais uma vez. Foi ao banheiro sem pedir licença, pegou o celular na bolsa e viu que além da ligação que havia rejeitado havia mais três do seu pai. Pensou em por que não quis atender da primeira vez e que seu pai não sabe onde ela está. Decide ligar. O telefone toca cinco vezes. “Atende, poxa”.
— Pai?
— Oi, filha. Pelo amor de deus, onde você está? – diz com ar de preocupação.
— Desculpa, eu tô na casa do Jorge.
— Por que você não atendeu, pequena? Por que faz isso?
— O senhor pode vir me buscar... por favor?
— O Jorge mora aonde?
— Avenida Santos Dumont, 2520. Edifício Montserrat. Bloco D. Apartamento 701.
— Mas minha filha, podia ter avisado...
— Pai, vem me buscar, por favor, só vem... tô esperando, tchau.
Levanta-se da espreguiçadeira à procura da sua carteira e de dinheiro. “Poxa vida, Santos Dumont, isso vai custar uns 70 reais. Que droga, Fernandinha, por que você faz isso”? Telefona chamando um táxi e vai buscar sua filha.

Terceiro cigarro e ele pensa se deve retornar a ligação que estava ignorando desde as seis da tarde. O cheiro que o gato deixou ainda fede. Vai para a sala de estar, observa seus livros. Cansou de fingir que contava as estrelas. Resolve ligar. Senta ao lado do telefone e disca o número que sempre soube de cor. Titubeia e ao primeiro toque desliga. Suspira. Quer dormir, mas não tem sono, nem ninguém em casa pra conversar a não ser seu gato indisciplinado que o segue por todos os lados.

“Quem é Jorge”? 
— Oi, filha, cheguei. Desça, por favor. Você pode aguardar aqui? Obrigado.

— Gente, desculpa, eu já vou.
— Mas já, Nanda? O Rafa tá trazendo cerveja, agora que começamos. Vai fazer o quê amanhã? Deixa dessa, fica aí, vai.
— Fica, amiga. Vai sair assim, sem mais nem menos...
— Desculpa, gente. Eu já liguei pro meu pai, ele tá lá embaixo esperando, falou, beijo, beijo.
Jorge se levanta e vai com ela até a porta, antes de sair a agarra pelo braço.
— Assim não, vai...
— Não, Jorge. Me solta, desculpa... Até amanhã.
— Eu não vou pra aula amanhã, meu pai só volta em um mês, tá no Marrocos em uma missão, sei lá, algo assim e minha mãe viajou pro interior. O que eu vou fazer na escola?
— Não sei. Até outro dia, então.
— Vou com você até o elevador.
— Não precisa, sério.
— Tá bom, então. Tchau.
Ela sai cabisbaixa. Jorge observa pela janela esperando que ela apareça lá embaixo.
— A Fernanda é muito paia, cara, que droga.
— Ai, amiga. Deixa ela. Um de vocês vai ficar sobrando, viu. – emenda a garota com uma sonora risada.
— Jorge, sai daí, cara, vem pra cá.
— Tô indo.
— Fazendo o quê, velho? Perdeu o cu aí fora foi?
— Não enche, viado! Tô olhando se a Fernanda vai sair bem, sei lá...
— Anda, pau no cu. Larga de ser otário. Parece que é besta.
— Oi, minha filha. Que bom te ver. Dá um abraço aqui, vai. Você é a melhor coisa que tenho nessa vida, a mais preciosa, minha pequena, papai ama você.
— Ai, tá pai, tá bom. Bora pra casa. Também é bom te ver.
— Quem é Jorge?
— É o nome do pai dele, ele é Jorge não sei o quê Filho.
Ele abre a porta do carro e ela entrar enquanto recebe mais um beijo na cabeça.
— Mas não perguntei sobre o nome, filha, quem é esse cara?
— Um cara da escola, pai, um amigo meu.
— Esse prédio é chique, né?
— É sim.
— Como foi com o doutor hoje?
— Normal.
— Falaram sobre o quê?
— Coisas.
— E foi bom?
— Sim.
Silêncio. Ele a abraça e ela se deixa abraçar, chegam assim em casa.
— Pai, amanhã eu tinha que levar o dinheiro da Roberta.
— Sabe, é que eu gastei com o táxi, você sabe como estão as coisas.
— Aff, pai. Que saco, ela vai ficar me cobrando.
— Mas filha... desculpa, eu não tenho.
— Ok. Quanto foi?
— 68, mas ele deixou por 60.
— Tá.
E vai direto para o quarto, se deita, quer chorar. Chora muito. Imagina um jeito desesperado de morrer, mas não consegue pensar muito bem, só chorar.
O amanhã chega e é outro dia e assim vai até a semana seguinte.

— Seu pai não pagou a sessão passada.
— Foda-se.
— Com isso continuo sem receber o pagamento.
— Foda-se.
Silêncio.
— E então, como foi a semana?
— Normal.
— O que quer dizer normal?
— Você é burro?
— Não.
— Isso é um saco, eu só venho pra cá porque me mandaram vir, mas eu odeio você.
— Nunca pedi que você gostasse de mim e isso não me interessa nem um pouco.
— Você é um idiota, um louco. Por que fala essas coisas?
— Por que você não tenta responder sem devolver uma pergunta?
— Por que você não vai tomar no seu cu?
— Chupou muito essa semana?
— O quê?! Olha o que você tá falando! Você é louco, cara. Me deixa em paz! – feições de choro. Continua:
— Você não entende nada! É só um velho de meia idade. Aposto que quando chega em casa vai bater uma punheta, comer sua diarista, entra no bate papo UOL com um apelido de “tiogostoso”, mas tem impotência, deve até dar esse cu velho, sem pregas. Esse seu saco mole e esse pau gelado. Sua mulher te largou pelo vizinho porque você é um broxa, seu broxa.
— Terminou?
— Não. Quero que você vá tomar no cu e que caia um raio na sua cabeça, que você seja estuprado e torturado por um viado que achar na internet. Você tem a maior cara de que dá o rabo pra travesti, velho nojento.
— Semana passada você queria me chupar.
— Você sabia que eu sou menor de idade? Quer ser preso? Eu vou denunciar você, seu filho da puta!
— Isso não muda o que você disse.
— Foda-se! Foda-se! E eu nunca disse isso, nunca disse que queria. 
— Isso te faz pensar em algo?
— Pra quê você quer saber? Aliás, não acredito que ainda tô aqui. Por que você não me manda ir embora como fez semana passada?
— Isso te faz pensar em algo?
— Bem, na verdade sim... no Jorge. Mas ei, vai se foder! Eu não vou ficar falando da minha vida pra um trouxa como você.
— Certo, pode ir embora, nos vemos na próxima semana.
— O quê?! Cara, você é maluco ou o quê?! Eu já comecei a falar, caralho. Não era isso que você queria? Porra, que droga. – começa a chorar com as mãos no rosto. A maquiagem borra. Ele permanece em pé ao lado da porta, mas ela continua a chorar. Volta com um lenço.
— Não quero porra de lenço, enfia no seu cu. – balbucia.
— Não vou fazer isso, você não precisa ir embora agora, ainda temos tempo.
— Ótimo.
— E o Jorge?
— Um cara.
— Imaginei que sim.
— Puta que pariu, hein. Você não sabe responder nada sem ser chato?
— Não faço questão. Mas continuando, quando você pensa em Jorge o que vem à sua cabeça?
— Olha, não vou ficar viajando, não. Jorge é um cara da escola. Semana passada quando saí daqui eu saí com ele, gosto dele, mas tenho medo.
— Pode continuar.
— Tenho medo, sei lá. Fiz um boquete nele semana passada. Na casa dele, ele pediu pra filmar e eu deixei. Depois chamamos uns amigos e umas amigas, fumamos maconha, íamos beber também. Ele é bem riquinho, sabe? Não assim milionário, mas é confortável a casa dele. O pai é militar da ativa, a mãe funcionária pública. Ele é bonito, legal comigo, essas coisas. E é mais velho, tem tipo uns 20 anos, nem sei...
— Estou ouvindo.
— Enfim, acontece que ele queria me comer, eu sei.  Mas eu sou virgem, não queria, eu tenho medo, me faz pensar em coisas. E eu saí chorando daqui da outra vez, meu pai ligou o dia inteiro, fiquei com vontade de chorar, ia dormir lá, mas quis voltar pra casa. Eu gazeei aula essa semana, tô muito mal em Química, Matemática, Física, essas coisas chatas, tô com medo de perder minha bolsa e meu pai não tem dinheiro, ele sofre pra conseguir me criar, eu só dou trabalho, eu não consigo ser legal com ele, me sinto culpada...
Continua:
— Eu gosto quando ele me elogia, sabe? Eu gosto que ele seja carinhoso, mas isso me deixa, sei lá, vulnerável. Mas é importante saber que eu tenho um pai, um pai assim... Olha, cansei, eu quero ir embora.
— Olha, ainda temos tempo, mas também acho que você deva ir. A porta não fica trancada, você mesma pode abrir, até semana que vem.
Na sua supervisão dessa semana esse caso tomou conta. Tudo que Fernanda falava lhe lembrava sua filha, sua ex-mulher lhe telefonando a semana inteira e ele ignorando. Não quis ligar ao saber que o assunto era sobre ela porque sabia que a mulher só havia dito isso para obrigá-lo a telefonar.
A semana se passa e mais uma vez ele não telefona. Seu gato está mais educado, não graças a ele e sim à diarista que agora se tornou secretária e vem todos os dias. Ele sente que não está conseguindo lidar com tais assuntos e sua cabeça está muito cheia, separação recente. Existem toalhas com o cheiro da ex-esposa ainda pela casa. O quarto da filha permanece fechado desde o dia em que a mãe a levou embora. Alice, de 17 anos, queria prestar vestibular pra Medicina, por influência da mãe advogada que queria uma médica na família. Ele queria que ela fosse escritora, poetisa, música, pintora, artista enfim, tudo que ele sempre quis, mas não conseguiu. Dava-lhe instrumentos e espaço para que se desenvolvesse nesse ponto, mas a mãe interferia e prezava pelos estudos da menina, o pai não conseguia estabelecer uma conversa muito duradoura com a menina que na maior parte do tempo era calada. Ninguém nunca lhe perguntou o que ela queria da vida ou que ela queria fazer, ela também nunca falou. Godard, o gato que ele comprou para Alice e que ele mesmo deu o nome, continuava no seu apartamento, lhe seguindo e cagando sempre que podia em todos os lugares quando ele estava por perto, lhe fazendo lembrar o quanto sua relação com suas mulheres fedia. Quando estava fora, usava a caixa.
Ele, no meio de um conhaque e outro, resolve enfim telefonar. “Ela nem ao menos me visitar veio, se fosse algo sério teria dado um jeito”. Pensou a fim de eximir um pouco a culpa.
— Ah, então você ainda existe?
— Não começa, Suzana.
— Não começa você! Há dias, dias! Eu ligo pra você e você não me atende, seu irresponsável! Aliás, grande novidade, você sempre foi um covarde, um idiota! Por isso você nunca foi homem! Aposto que tá aí nu, tomando uma bebida qualquer, fumando as porcarias desses seus cigarros nojentos, que nojo!
— Olha, não liguei pra ficar ouvindo você falando merda.
— Ah não?! Ligou pra quê então?! Hein?! Pra saber da sua filha você não liga, liguei várias vezes e você não atendeu, nem retornou, não veio aqui! Eu é que não vou ficar indo atrás de você, seu inútil!
— Porra, Suzana! Que merda! Para com isso, caralho! – o copo vai ao chão, suas sobrancelhas arqueiam-se e Godard sai de perto. Continua:
— Dá pra falar o que era então?!
— Sim, saiba que Alice está andando com uns maconheiros, está chorosa, não estuda, acho que anda bebendo, ela só tem 17 anos... é uma criança, tem que estudar. Não sei, ela de uns dias pra cá tá muito diferente, sempre foi calada, mas tá demais, não sei o que fizeram com ela. Enfim, como você é um inútil, não poderia ajudar. Então eu preciso que você me indique alguém competente que possa fazer algo.
— Olha, não é assim, preciso falar com ela, mas você fica escondendo a menina de mim. Sempre foi assim...
— Ora, que loucura! Escondendo... Você que nunca foi homem pra ser um pai! Você é um traste! É só isso que tem a dizer?
— Suzana, espera, não é assim, me preocupo com Alice, mas essas coisas precisam ser resolvidas com calma...
— Olha, quer saber? Dane-se! Eu me viro sozinha!
— Suzana? Suzana! Caralho, que merda! Droga! – o telefone voa pela janela.
Deita-se no chão, ao seu lado estilhaços do copo quebrado, amanhã tem que ir trabalhar, como sempre. Chora, dorme de bruços.

Fernanda chega com o cabelo mais desarrumado que o normal e seu perfume é diferente. O psicólogo não conseguia pensar direito, só queria mesmo ir bater na casa da ex-esposa e tentar fazer algo, mas era um covarde. Ela já começa falando.
— Sabe o Jorge? Pois é, eu dei pra ele.
Sem obter nenhuma resposta, ela continua.
— O problema é que eu confiei nele, achei que valia à pena. Eu não gostei...
— Então fizemos mais vezes, mas ele disse que eu sou ruim, eu fico nervosa, sabe? Fico insegura com isso e ele disse que eu não sou virgem, por isso sou ruim... Meu corpo é magro e feio, olha. Eu não tenho peito, não tenho bunda, eu consigo ver minhas costelas, não sei porque ele me quis... não gosto de falar sobre isso de virgem com ele porque me lembra de coisas que não gosto de falar...
— Você não vai falar nada? Só vai ficar aí com essa cara de bosta que você tem? Você tá ouvindo o que eu tô falando?! 
Enfim ele se manifesta.
— Estou ouvindo, pode continuar.
— Você é péssimo, não sabe fazer nada direito. Quando eu penso que posso confiar em você, você me vem com essas.
— Continue.
— Ah, vá se foder!
— Não.
— Puta que pariu! Enfim, dane-se, eu vim aqui pra falar isso e vou falar. O que tá me incomodando é que o Jorge tava comendo outra menina, ela é muito mais bonita, tem muito mais corpo, é mais inteligente, é dessas turmas especiais de ITA, Medicina, sei lá, uma coisa dessas. Ela é tão quietinha. Mas o que aconteceu foi que ele levou ela pra casa e lá ele deu bebida pra ela, ela foi estuprada, né, e ele não estava só. Eu não consigo acreditar que confiei nesse cara e o pior, eu pensei que a gente tava tendo algo, até deixei ele me filmar na primeira vez na casa dele, quando tava só a gente e tal, e fui embora. Ele filmou ela também, o vídeo todo mundo da escola já viu, é horrível, ela grita que não quer a todo momento, mas estranhamente eu gosto de ver...
— Alguém já o denunciou? Você me contando isso insere uma questão ética aqui.
— Não, todos tem medo. Familiares dele são muito influentes e o pai é militar, dizem que já matou muitos. 
— Você quer ver o vídeo? Eu tenho aqui. – antes mesmo de responder ela já se levanta e vai mostrá-lo, já estava com o vídeo só esperando pelo play.
— Não quero ver, não precisa.
— Precisa sim, eu quero que você veja, vê.
— Eu não vou ver. Me fale sobre porque você gosta de ver diante de tudo que você me contou.
— Vai ver sim, olha. - E posiciona o celular na frente do rosto dele.
— Vá embora daqui, por favor.
— O quê? Você é doido mesmo, não vou não.
— Por favor, saia daqui agora.
— Não, faz nem dez minutos que tô aqui. Meu pai se fode pra pagar isso e você quer que saia já assim?
— Sai daqui agora, porra!
— Você tá louco?! Você não pode gritar comigo assim, seu doente! E eu não vou sair, vou chamar a polícia pra você, você tá louco!
O homem começa a chorar, balbucia: 
— Vai embora, por favor.
Sim, era Alice.
Fernanda obviamente se assusta. Seu estado emocional não o permitia trabalhar, mas se não o fizesse como iria comer? Teria sido imprudente em não encaminhar o caso logo?
Atônita e sem saber o que fazer, Fernanda só consegue dizer:
— O que foi? Desculpa, eu não devia ter feito isso.
— Olha, desculpa mesmo, eu sou uma idiota.
Não obtia nenhuma resposta e o homem parece inerte no tempo, simplesmente olhava para o nada sem dizer uma palavra. Sem saber se era autorizada a tal tomou a liberdade e aproximou-se mais do homem, pôs a mão em seus cabelos e lhe fez um cafuné. Devagar, sua cabeça pendia para a direita, em direção ao peito da adolescente. Era a primeira vez em 16 anos que alguém lhe fazia um carinho. Claramente, a relação mudou de figura e dessa vez ele teve coragem de aceitar o que acontecia naquele momento, se deixou abraçar e mordeu sua mão em uma mistura de raiva de si mesmo, ódio e tristeza. Nunca sua covardia lhe fora tão gritante. Nesse momento absurdamente estranho em que toda a sua vida em diversos aspectos vira ao avesso ele não sabia o que fazer. Podia sair dali e tentar resolver a situação de alguma maneira, mas preferiu ficar. Fernanda não dizia nada, mas também continuava sem entender qualquer coisa e só permaneceu imóvel fazendo algo que nem com seu pai ousara fazer. Ele se recompõe.
— Sente-se, por favor.
— O que foi isso?
— Olha, menina, tem certas coisas da vida que pessoas como eu teimam em tratar como efêmeras, fazemos isso de propósito. Não deixe as pessoas se afastarem, elas vão ficar com raiva. Com raiva de você. E você vai ficar triste. E vai se afundar nisso cada vez mais e mais. Os relógios vão se quebrar, mas o tempo não. Assumir essa atitude é total covardia. E eu não consigo fazer diferente. Eu já perdi tudo que eu tinha e não me interesso há anos em conseguir mais nada. Em poucos dias o pouco que me restava se foi. Meu peito nunca doeu tanto como dói agora ao perceber isso...
— Eu acho que eu devo vir na próxima semana, então?
— Não, senta aí. Eu ainda não terminei e temos tempo. Você tem cigarro?
— Tenho.
— Acende aqui pra mim. Obrigado.
— Enfim, o que houve?
— Nada.
— Você está mentindo.
— De quê te interessa?
— E você está fazendo drama também.
— Ok... Bom, a tal menina se chama Alice.
— Ah, então você a conhece.
— Não sei se conheço.
— Mas se sabe o nome, deve conhecer. Ela é sua paciente também?
— Não.
— Como sabe o nome dela?
— Ela costumava ser minha filha, até minha mulher, ex-mulher, levar ela embora.
— Ah... acho, que entendi.
— Você não é capaz de entender.
— E por que não?
— Você é uma criança.
— Eu também sou filha de alguém.
— Bem, isso é verdade.
— E também não tenho mãe, ela foi embora. Digo, ela ficou louca, teve um surto e morreu.
— O celular está tocando. Que droga, é Suzana, minha ex-mulher.
— Então atende.
— Não vou fazer isso, atenda você.
— Claro que não, a mulher, desculpa, ex-mulher é sua. Atende você, oxe.
— Atende, vai. Pode atender, pega aqui. — atende e dá o celular para a menina. — Diga que estou ocupado.

— Oi, ele tá meio ocupado.
— Quem é você? Alguma puta?
— Não senhora, me desculpa. Por favor, não me chama assim. Não tenho nada a ver com as histórias de vocês.
— Nossas histórias? Ah, então você deve ser uma puta mesmo e ele deve estar conversando com você, ele é broxa mesmo, não poderia fazer nada.
— Senhora, não fala assim comigo.
— E por quê ele não atendeu essa merda?
— Como eu disse, ele tá meio ocupado agora. — observa os sinais dele. — Mais tarde ele retorna.
— Pois diga a ele que não precisa retornar. Conversei com minha filha e já sei do que se trata. Vamos embora hoje à noite.

— Ela desligou.— diz devolvendo o celular.
— O que ela disse?
— Por que ela grita tanto?
— Ela é louca. Mas enfim, o que ela disse?
— Eu não vou te contar.
— O que é isso agora, hein?
— Acho que você mesmo tem que ir ver ela e saber.
— Você tá frescando com a minha cara, menina?!
— Não precisa ficar alterado, tenho certeza que se você for até lá pra saber o que é você vai conseguir muitas coisas. Além do mais, ela não me disse o que era.
— Como assim o que era? O que ela disse a você?
— Nada demais, ficou gritando comigo e me chamou de puta. Acho que você me deve desculpas.
— Nada nada?
— Não.
— Ok.
— Olha, é isso mesmo? Você vai ficar aqui conversando com uma adolescente feito um idiota? Olha pra você, dá pena. Sua filha precisa de você, mas se eu fosse ela eu teria vergonha de ter um cara como você como um pai...
— Você não sabe...
— Você e sua mania de achar que os outros não sabem, de dizer que os outros não sabem, você só tem medo de que os outros saibam porque você não quer saber, é um cuzão.
— Já chega.
— Não, não chega. Eu aposto que você não sabe nada sobre sua filha. Não sabe sobre seus namorados, namoradas, enfim. Não sabe o que ela sente.
— Ninguém sabe o que os outros sentem.
— Lá vem você de novo, claro que sente. Eu sei o que você sente. Você sente medo. Seu coroa medroso. Sente medo. Vai dizer que eu tô mentindo?
— Você está certa.
— Aaaah. Conseguimos algo então, você já está admitindo que alguém pode estar certo.
Ele sorrri, fica constrangido com a situação. Levanta-se mais uma vez, tranca a porta e vai ao encontro de Fernanda, a olha dos pés a cabeça e pede para se levantar.

— O que você vai fazer?

— Silêncio.
— Não. Eu tô com medo. Abre a porta, eu quero sair.
— Silêncio, me abraça.
— Não. Não, por favor, me solta. Eu não tô gostando disso.
A segura forte entre os braços, Fernanda poderia resistir de maneira mais enérgica, mas não o quis, se deixou abraçar. Isso a fez pensar no seu pai, os ovos do café estavam queimados. Fechou os olhos, uma pequena, sincera e ousada lágrima descia pelo canto esquerdo de sua face.
Para ele, estranhamente, nada fazia muito sentido. Ele queria se vingar, apenas isso.Nem mesmo seus papeis se sustentaram mais.
— Senta aqui. — Agora chupa meu pau, abra a minha calça.
— O quê?! Você é louco?! Seu idiota! Seu viado, eu vou chamar a polícia. Me tira daqui, por favor, me tira daqui, me deixa sair. — o choro é inevitável.
— Cala a boca e me chupa.
— Não vou fazer isso, se você fizer isso eu vou arrancar a cabeça desse seu pau velho com uma mordida.
— Você não vai fazer isso, apenas chupa.
— Você é ridículo, por que você mesmo não tira sua roupa?
Agarra seu rosto delicado, seus dentes estão cerrados e sua cara é de ódio e medo.
— Eu vou gritar.
— Não, você não vai.
Ela cospe.
Ele lhe bate, no rosto. Segura forte seus cabelos curtos.
Ela grita alto.
— Vagabunda.
Alguém bate na porta, gira a maçaneta.
— Sua putinha, vá embora daqui. Deixe o cigarro sobre aquela mesa.
— Você não faz a mínima ideia do que está fazendo. Eu devo vir na próxima semana?
— Não. Tome esse papel, entre em contato com alguma dessas pessoas. Nunca mais volte aqui, eu não quero nunca mais ver você. Agora vá embora, eu vou ficar aqui na janela, preciso olhar o céu.
— É... ok, então, tchau...
Fernanda sai confusa, com medo, precisa ficar sozinha.
Ele telefona para a recepcionista, pede para cancelar todos os atendimentos do dia e repassar os contatos que ela já sabe. Respira de costas para a porta e em pé, bem próximo a janela. Seu consultório fica no 8º andar.

Fernanda caminha sem rumo.
— Pai, o senhor pode vir me buscar?
— Eu tô no trabalho, filha. Mas onde você tá?
— Olha, pai. Eu não sei. Mas tudo bem, fica tranquilo. Eu vou encontrar um ônibus e ir pra casa.
— Tem certeza, filha?
— Tenho, relaxa. Pode ficar despreocupado.
— Tenho que desligar, não posso ficar falando com o celular. Só atendi porque era você.
— Tudo bem, pai, desculpa. Até mais.
— Até, se cuida, viu.

— Moço, você sabe onde eu pego um ônibus pro terminal do Papicu daqui?
— Você precisa de ajuda?
— Não, eu só quero ir pra casa. Você sabe dizer onde pego o ônibus ou não?
— Tem certeza que não precisa de ajuda? Eu posso levar você em casa, você parece ferida... aqui no rosto. Tem o telefone de alguém da sua família?
— Eu já falei com o meu pai, ele sabe pra onde eu vou.
— Olha, tá certo, então. Continua aqui nessa rua, anda mais quatro quarteirões e entra à esquerda, tem uma parada. Lá passa ônibus pro Papicu.
— Obrigada.
O homem a segue.
— Não precisa ir comigo, sério. 
— Não, eu vou com você até lá, aqui é perigoso.
— Não interessa, eu sei me virar.
— Não é o que parece.
— Olha, muito obrigada, mas eu quero ir sozinha, você não consegue ver? Que saco.
— Ok, desculpa incomodar.
Fernanda pensava sobre o dia de amanhã. Uma maneira de não pensar no hoje. Mas era inevitável. Suas projeções eram estáticas, mortas até. Sozinha pelas ruas de uma bairro desconhecido ela pensava em voltar, mas não sabia como chegou até ali. Tantas árvores nas ruas que são tão limpas, tantos prédios. Ela se deixava tocar pela brisa suave e pelos raios de sol que esgueiravam-se sobre os edifícios. Uma barata. Gatos de rua. Um homem idoso e dois cães em uma coleira, eles usavam roupas, adereços nas patas. Era estranho. Não queria fumar. De fato, havia um ponto de ônibus, ninguém lá. Ninguém deve pegar ônibus ali. Garrafas de cerveja nos cantos próximo ao ponto, próximo ao poste. De onde vem essas garrafas? Elas sempre estão no mesmo lugar. Um micro ônibus vai virando na esquina, deve ser esse. Dá o sinal e sobe. Apenas duas senhoras no ônibus.
— Moço, esse ônibus vai pro Papicu?
— Vai.
— Demora?
— Não.
— Obrigada.
Senta-se na cadeira reservada aos deficientes. Silêncio. Que droga, esqueceu os fones de ouvido. Não se deu conta que na caixinha de som do motorista tocava Legião Urbana, Pais e Filhos. Quando conseguiu um momento de paz pôde enfim ouvir e até cantou "você diz que seus pais não entendem, mas você não entende os seus pais". Queria ouvir Joy Division, Insight, não se importou. Pegou o telefone, pôs a música baixinha em seu próprio ouvido e cantou junto lentamente, nem se importava em acompanhar a música

"Guess the dream always end
They don't rise up just descend
But I don't care anymore
I've lost the will to want more
I'm not afraid, not at all
I watch them all as they fall
But I remember
When we were young"

Algo como 

"Acho que os sonhos sempre se acabam
Não crescem, apenas declinam
Mas eu não me importo mais
Perdi a vontade de querer mais
Não estou com medo, de jeito nenhum
Eu os assisto enquanto caem
Mas eu me lembro
De quando éramos jovens"

A música continuava, mas ela só repetia consigo mesmo outros versos 
"I'm not afraid anymore
I'm not afraid anymore
I'm not afraid anymore"

Gostaria mesmo de acreditar no que estava dizendo. Quando o ônibus para ela desperta. Desce e segue para sua parada. Está com sede. Tem fome. Mas não tem mais dinheiro, tem que esperar até chegar em casa. Quer dormir, ainda é tão cedo. Ainda é dia. Sempre achou que as piores coisas aconteciam à noite. "I'm not afraid anymore". Mentira. A vida parecia ruim. O ar parecia sujo. As pessoas pareciam feias. Foi em pé. Ao lado do cobrador, olhava pela janela com ar de desdém. Estava com medo.

Chega em casa e apenas deita no quarto, não consegue chorar. Esquece da fome e da sede. Dorme. A porta do quarto fica aberta. Dormiu a tarde inteira. Seu pai chega. Molhada de suor, ela se vira e o abraça.
— Pai, que bom te ver. Eu não vou me afastar de você, não se afasta de mim, por favor.
— O que houve, filha? Tá tudo bem?
— Só me abraça.