terça-feira, 12 de novembro de 2013

Na Pele

Vejo muita gente por aqui comentando sobre cotas, isso e aquilo outro. Fica difícil de me posicionar porque meu pensamento já fica logo embargado e minha garganta dá um nó, mas como uma mistureba (assim como todo mundo que vive aqui nesse país) de preto, índio e branco, oriundo da escola pública e da Barra do Ceará, o que tenho a dizer é que por tempos fui contra cotas, sobretudo antes de entrar na tal da faculdade e conhecer a tal justiça social ou seja lá o quê. Isso mudou exatamente porque no curso que estudo: Psicologia, na UECE, demorou incansáveis quatro anos para entrar dois alunos de escolas públicas estaduais, eu e mais um da minha turma, vindos do Liceu do Ceará e do Liceu do Conjunto Ceará. Quando fiz Economia na UFC, dentro da turma também só haviam dois alunos de escola pública, eu e mais uma amiga, até outras pessoas irem sendo chamadas.
Eu, que jamais havia convivido com pessoas tão "bem nascidas" me espantei com a mudança brusca de realidade, quando uma colega vinha puxar conversa perguntando onde eu morava e eu respondendo:
- Barra do Ceará.
- Isso fica aonde?
Rapidamente pensei, "como assim fica aonde? É a Barra do Ceará, caramba!" Depois ela complementa:
- É que eu tô perguntando aqui pras pessoas onde elas moram porque daí a gente pode rachar a gasolina e usar só um carro, não precisa todo mundo vir no seu carro.
Eu, ali na UFC, com meus inocentes 17 anos e que havia andado de carro apenas uma vez em toda a minha vida até aquele momento estava aturdido. Não pela maneira como as pessoas me trataram ali naquele primeiro dia de aula, pois fui muito bem tratado, mas sim por me sentir um ser completamente estranho e as pessoas que falaram comigo me estranharem totalmente.
O que levei pra casa foi um sentimento de estranheza completa, como se aquilo não fosse pra mim, pra gente como eu e que eu sofreria muito pra me adaptar a esse novo mundo. Mas daí lembrei das madrugadas de estudo, sempre com a ideia na cabeça dos dizeres de minha vó "estude pra ser gente", uma frase que sempre me incomodou por não entender o que seria "virar gente", mas que me impulsionava.
Nesse primeiro dia de aula, quando cheguei em casa, um filme extenso passou na minha cabeça com todas as situações difíceis até chegar ali, dentre as quais muitas marcaram e deixaram feridas que sangram até hoje, tais como acabar o gás e fritar um ovo com isqueiro, quebrar uma vassoura pra fazer fogo no meio de tijolos no quintal com esgoto estourado porque não havia dinheiro pra ajeitar e em meio a tudo isso ter que ir pra aula e estudar pra passar no vestibular, além de chegar com um sorriso amarelo estampado em uma cara estúpida com disposição pra rir de piadas, e à noite antes de dormir, demorei pegar no sono porque chorei muito, como pouquíssimas vezes aconteceu em minha vida.
Comparado aos amigos de infância fui um privilegiado, pois apesar dos pesares minha família realmente investia em mim e minha mãe me dava muitos e muitos livros e revistas, enciclopédias, etc., diferente dos amigos da rua com famílias que não davam a mínima pra eles. Vi e ouvi sobre amigo apanhando de polícia, sendo preso, sendo morto, sendo espancado. Procurava me afastar da "galera da pesada" e graças a uma família que protegia não me envolvi diretamente com coisas desse tipo na infância e adolescência, sem falar do período em que fui morar em Caucaia e que com certeza foi fundamental pra que eu chegasse aqui onde estou, onde passava tardes sozinho lendo um livro qualquer em cima de uma goiabeira e comendo fruta do pé.
Até chegar a notícia que eu fiquei em 3º classificável em Psicologia na UECE, com uma concorrência de mais de 53 para uma vaga, o que significava que eu havia sido aprovado, demorou muito tempo mesmo pra ficha cair, muito mesmo, acho que até hoje não caiu direito e me lembro de eu em um ônibus com meu amigo Bilé indo pra casa do meu amigo Yuri e dizer:
- Caralho, eu passei em Psicologia na UECE... muita cagada, como é que pode, assim do Liceu e passar...
- Cagada é uma porra, se toca, o cara passa o dia, a noite e a madrugada toda estudando todo dia e vem falar em cagada.
Responde Bilé, que talvez não saiba do impacto que essas palavras causaram, mas essa conversa se repete insistentemente na minha cabeça até hoje.
No cursinho onde estudei, Curso XIIde Maio, que era voltado pra estudantes de escola pública vi muita gente fodida, parecida comigo e em situações muito piores que a minha. Ver aquela galera pegando ônibus junto comigo mais de dez da noite e indo pra casa com sorriso no rosto apesar do cansaço e movidos pelo mesmo sonho de ter acesso a essa tal de faculdade era muito cativante, indo pra aula literalmente todo dia, de domingo a domingo, de feriado a feriado. Eu sabia que, como eu, muitos ali deixavam de comer pra pagar a passagem, pra pagar a mensalidade do cursinho, pra pagar a apostila, etc., e hoje vejo de lá por onde ando e encontro com ex-colegas futuros químicos, arquitetos, advogadas, médicos e médicas, engenheiros e engenheiras, professores e professoras, cientistas sociais, físicas, biólogos e biólogas, economistas, historiadores e historiadoras e psicólogos e psicólogas como eu, pois depois de mim entraram mais quatro alunos de lá na Psicologia da UECE e conheço mais duas de Psicologia na UFC. Os professores e professoras de lá eram incríveis e apesar de não ter muito contato pessoal com muitos toda vez que penso nelxs me dá vontade de tá perto pra poder dar um abraço e daqui a 2 anos quando eu me formar eu quero procurar todxs pra dar algo de volta, pois lá ouvi pela primeira vez a frase do Isaac Newton, do Fabricio, professor de Física "se enxerguei mais longe foi porque me apoiei em ombros de gigantes", desde já deixo meu agradecimento aos professores que conhecem todos nós pelos nossos nomes. <3<3<3
Daí sobre cotas, antes de entrar no ensino "superior" se eu passasse com cotas eu teria vergonha, pois quer queira ou não reforçam a discriminação racial por uma via ou por outra, mas eu entrei sem elas e isso serviu pra fazer uma crosta de orgulho ao meu redor e saindo da UFC e indo pra UECE, já vacinado, simplesmente chegar e ocupar o espaço, sem estranhamento, um sentimento do tipo "sai do meio, que esse pirangueiro aqui também entrou nessa porra!", pois "eu não preciso do seu racismo!". Mas com as cotas atuando nas universidades e em outros setores vejo as coisas acontecendo e sendo efetivadas e há cerca de 2 anos meu posicionamento acerca disso muda completamente. É inegável a diferença, ser contra as cotas é cuspir no povo brasileiro, é não saber se apoiar nos ombros de gigantes, é negar dignidade a quem nunca soube o que é ser essa gente que dizem que temos que nos tornar...
A cada mísero trabalho que apresento nos eventos acadêmicos regionais, locais e nacionais eu sinto como mais um passo pra pôr fogo no engenho onde meus ancestrais apanharam. Sempre após apresentar um trabalho, que já são cerca de quarenta, me emociono. Me emociono a cada aprovação e vejo uma imagem de um engenho pegando fogo e o sentimento de "também tenho direito de tá aqui nessa porra!". Além de que, dentre os amigos de infância e as pessoas que convivi, até aqui eu fui o que cheguei mais longe. O simples fato de estar matriculado nesse curso já constitui, não só pra mim, mas pra muita gente que conviveu comigo, a maior vitória que já vi. Recentemente um amigo que estudou nas mesmas escolas que eu e cresceu no mesmo bairro, após ser aprovado em Pedagogia na UFC veio falar comigo dizendo que jamais imaginou que faria alguma faculdade na vida, pois achava que isso não era pra ele e que era difícil demais (o que de fato é), mas aí depois que fui aprovado ele viu que era possível e passou a estudar pro vestibular. Depois de ser aprovado e ter o primeiro dia de aula, disse que fez questão de contar essa história para a turma toda. Certamente, não pude conter as lágrimas que vinham vez ou outra no meio do dia por uma semana inteira, pois em mais de três anos de vida acadêmica essa, com certeza, foi a coisa que mais valeu a pena até aqui!
Por outro lado, isso de vitimização exacerbada enche o saco, mas isso é inegável, quando nós "marginais" nos levantarmos e ocuparmos os espaços que também são nossos, mas nos são negados, é que o bicho pega e isso já acontece, pois nós agora também temos TV por assinatura, temos carro, temos TV LCD, o caralho a quatro e o mais massa: TEMOS COMIDA NA MESA E VAGAS NAS UNIVERSIDADES!!!!!
Nada mais verdadeiro do que "quem fala mal do bolsa família é porque nunca passou fome".
Porém, o que me irrequieta profundamente é que eu simplesmente não aguento mais essa universidade do jeito que ela está, essa educação do jeito que ela está, a formação dos profissionais que prestarão serviços a mim e a meus filhos do jeito que está, enfim as coisas do jeito que elas estão. É mais do que urgente destruir essa porra toda e construir algo novo, NOVO! Isso tem me incomodado tanto que por muitas vezes perdi o gosto de ir às aulas e ir procurar fazer outras coisas nem que dentro dos muros imensos que existem na UECE e em outros locais, eu falto pra caralho porque minhas aulas quase sempre são chatas, repetitivas, conteudistas, iguais, entediantes e sem a menor perspectiva de vida concreta. Os livros em sua maioria são ridículos, ando nas ruas e olho pra minha vida e não vejo nada contemplado na maioria das páginas que sou obrigado a ler e fazer uma prova idiota. Lutei tanto pra chegar até aqui e quando a ilusão passa a gente vê a merda que é uma faculdade. Faculdade é uma merda e absolutamente todos os dias me pergunto se é isso que realmente eu queria pra minha vida, se eu não queria simplesmente capinar um roçado e colher meu feijão, fumando um pé duro, como os homens simples que vejo pelas ruas quando vou visitar minha vó que escolheu como residência Caucaia fugindo do barulho de carro, asfalto, som, ônibus, fugindo da meritocracia... Lá as pessoas não se incomodam com os pássaros cantando, não se prendem dentro de suas casas e nos fins de tarde todos sentam em grupos nas calçadas de suas casas, cumprimentam todos que passam com uma onomatopeia e comem fruta do pé. É muito diferente e tão mais confortável.

As cotas também servem pra pôr fogo no engenho.