domingo, 8 de fevereiro de 2015

Covardia


Meu avô era uma homem que sorria, mas seu riso era muito estranho, machucava mais do que qualquer outra coisa. Com aquele homem aprendi a apreciar a solidão, aprendi isso sem trocar com ele sequer duas palavras durante toda a minha vida, apenas um “feliz natal” que ele me deu junto de uma edição d’O Manifesto Comunista, de Marx e Engels, e uma coletânea gravada em mp3 do Raul Seixas. Foi há três anos atrás, eu tinha 14 anos, nunca havia o visto. Era uma história que a família evitava, mas ouvi algumas vezes que ele era louco, doente, bêbado e a que mais doeu: covarde. Apesar de ter crescido sem conhecê-lo, a maneira como falavam quase sussurrando me machucava de alguma maneira e a palavra que mais doeu foi essa, covarde. Acabei absorvendo quase que inexoravelmente a repugnância moral pela falta de coragem e aprendi por conta própria a me virar sozinho. Na verdade, sempre soube que era mentira, eu não gostava dos ovos com a gema mole que minha avó fazia, nem do bolo fofo de laranja que ela sempre fazia aos sábados, odiava a gemada que ela me deu por anos aos domingos pela manhã e eu nunca disse isso. Nunca fiz os ovos eu mesmo, nem deixei de comer o bolo com o café extremamente doce que me irritava, nem a gemada que era meu desjejum semanal de penitência por algum pecado dos meus pais. Eu nunca falo nada. Considero isso de certa forma uma virtude, ficar calado é difícil. Isso também sei que é mentira, pois me calava por calar, por medo, por covardia.
O tempo passava normalmente e eu sempre o notei, meu corpo nunca fez questão de esconder: meus pelos pelo rosto e corpo inteiro, meu tamanho, meus braços, meus dentes, meu pênis. Mas conforme esse tempo passava me incomodava também a sensação de covardia. Certa vez ouvi “Você vai abandonar a sua família, vai ser um covarde igual ao avô”. Tenho quase certeza que ninguém disse isso, que era coisa da minha cabeça durante alguma das minhas constantes divagações. O que é comum para um jovem solitário em uma casa cheia de gente que fala, grita, arrota, peida, arrasta os chinelos o tempo inteiro e fica querendo pegar em você sempre que tem oportunidade. Um inferno. Encontrava refúgio nos livros que alugava na biblioteca da escola e nas bibliotecas públicas, os lugares que mais frequentei, curiosamente depois de conhecer meu avô e ele ter me dado aquele livro comunista, fiquei curioso. Ouvi as músicas do Raul e o verso “olho os livros na minha estante que nada dizem de importante, servem só pra quem não sabe ler” sempre me incomodou, penso nele quase todos os dias.
Poucas vezes se vê meu avô andando pela casa, ele não fala com ninguém. Apareceu um dia, em dezembro. Bateu à porta, trazia consigo uma mochila dessas que se leva com uma só mão, de lado. Barbas longas e grisalhas, óculos com armação preta grossa que contrastava com seus poucos cabelos grisalhos e desgrenhados, parecia que há anos não os penteava. Deu umas palavras, abraços curtos e foi em direção aos quartos de minha avó e de minha mãe. Aquelas mulheres se olhavam, parecendo sem saber o que dizer. Ninguém me apresentou, apenas fiquei sem saber o que se passava, peguei meu Mágico de Oz que estava relendo e fui para o meu quarto, para evitar falar com visitas que não conheço. Odeio quando minha avó, minha mãe ou minhas tias ficam mostrando a casa, querem me mostrar, me pedem para cumprimentar as pessoas. Odeio, mas sempre faço. Porém, dessa vez não.
Mais tarde vieram me dizer que se tratava do meu avô, o que eu nunca conheci, mas sabia que existia, apesar de sempre evitarem comentar.
A figura daquele estranho homem velho com aspecto jovem foi se tornando comum com os almoços e jantares diários à mesa. Todos comiam à mesa, minha avó aproveitava a oportunidade para comentar das pessoas do bairro que morreram, nunca fazia a menor ideia de quem se tratava. No começo suas feições eram até amigáveis, apesar de dificilmente sorrir e quase nunca falar, o som da sua voz ainda hoje me é estranho. Com o tempo ele foi ficando mais sisudo, cara fechada. Começou a construir algo no quintal e eis que enfim se ergue uma casa de um cômodo com banheiro. Para lá levou uma rede, uma mesa, uma cadeira e a sua mochila que estava aberta, vi lá dentro dezenas de livros. Quase nunca ele saía, vez ou outra para comprar cigarros, vinho barato e cachaça na bodega vizinha. 
Estava próximo o natal, a data que mais odeio. Juntava a família inteira lá em casa, todos falam comigo. Meu único desejo era ficar em coma e só acordar depois de dois meses, passado também o carnaval. 
E esse natal ainda contava com a presença tacanha e confusa daquela figura que eu nunca soube sequer o nome. Em seu semblante havia autoridade, mas também conseguia identificar carinho e uma inexequível leveza que ele trazia no olhar e nos dentes.
Quando chegou na sala, aproximou-se de mim com um embrulho e disse “feliz natal”. “Obrigado”, respondi. Sentou-se no sofá e respondeu aos familiares que pareciam ter muitos assuntos para conversar, mas que se acanhavam. Fui direto ao quarto e vi os presentes: um livro e um cd.
Depois desse dia nunca mais falei com ele, li o livro que me deu três vezes, uma em cada ano e o cd ouvia constantemente. 
Três semanas atrás comecei a ficar com uma menina da escola, ela se chama Joyce, não a acho muito bonita, na verdade não sei bem o que me atrai nela, talvez nada e a iniciativa não foi minha, mas acredito que vamos namorar. Ela tem uns papos estranhos sobre magia, astrologia, signos, essas coisas. Diz que gosta de mim porque sou de peixes. Fez o meu mapa astral, sinastria amorosa e mais um monte de coisas que não lembro o nome. Nada disso me interessa, na verdade. Ela escreve coisas, uns poemas. Escreve em papel de caderno e me dá uns dois ou três toda semana.
Há uma semana atrás minha mãe, com seu horroroso hábito de fuçar minhas coisas abriu minha mochila e encontrou os poemas de Joyce. Veio brigar comigo, pois eu não havia contado nada, ia prestar vestibular e precisava ser aprovado, que eu era estranho, que não falava com ninguém e gritou “Você quer ser igual ao vagabundo do seu pai, um covarde, um imprestável?!”. Dessa vez não aguentei muito e respondi também gritando enquanto derrubei uma cadeira com um chute “Eu odeio você! Odeio essa família! Vocês são repugnantes, quero ir embora! Vocês não conseguem ver que vocês só atrapalham a minha vida?! Eu não gosto de você, nunca gostei!”. Minha mãe pôs-se a chorar sentada na cadeira à mesa. Em minha mente passava-se a estranheza completa da situação por algo que considerei no momento tão irrelevante.
Paralisado, fiquei sem saber o que fazer, quando virei o rosto vi meu avô na porta da cozinha a me olhar fixamente. Ele me destruiu apenas com isso, seu olhar fulminante atravessou a minha espinha. Garganta seca. Permaneceu a me fitar por mais quarenta segundos que pareceram uma eternidade, senti que ia morrer. Entrei no quarto, encostei o guarda roupas na porta e a cama logo em seguida a fim de me trancar. Dormi.
No dia seguinte minha mãe, minha avó e minha tia andavam um olhar cabisbaixo, o gosto era de tristeza, de ignorância. Evitei falar, ninguém falava, na verdade. Algo muito grave aconteceu. Fui à escola, mas desviei o caminho para a biblioteca municipal, lá passei o dia inteiro, não apareci em casa para almoçar e comi um biscoito recheado que levava na bolsa.
Chego em casa e o clima continua estranho, ninguém pergunta sobre por onde andei nem por que não almocei em casa, se me alimentei, todas essas coisas que sempre perguntam. Tomo banho, descanso um pouco e compareço à mesa na hora do jantar, um prato a menos, meu avô não jantou conosco. Não perguntei nada, ninguém trocou palavras. Minha mãe lava as louças, minha avó recolhe as panelas, depois juntam-se à minha tia na sala para assistir as novelas.
Saio do quarto e me dirijo ao cômodo que meu avô construiu, ele não está lá. Não me sinto surpreso, não há mochila nem rede, apenas a mesa, a cadeira e um livro: Demian, Hermann Hesse, em uma edição antiga. O folheio e descubro um bilhete datado de hoje.


Eu poderia ter esquecido... ou morrido... matado você... seria o caminho mais fácil e natural das coisas... mas eu vivo... bastante, infelizmente!
Mal me digo todas as vezes que me recordo de algo sobre nós trazido por você ou pelos outros, eu não quero saber, será que é tão difícil respeitar isso? 
Eu poderia fingir ter esquecido, mas também somos o que perdemos. 
Eu menti, eu não te perdoei e jamais me perdoarei por isso.
Não se meta mais com a minha vida.
Eu nunca te amei.
Adeus.


Decidi ficar com o bilhete só para mim, não sei a quem se destinava, se para minha avó, minha mãe, minha tia?  Aliás, era endereçado a alguém? A mim? A mim impossível. Se bem que acredito que ele imaginava que eu quem o encontrasse, que adentrasse o seu espaço, pois ninguém ousava entrar lá e ele deixou um livro, só quem gosta de livros sou eu... No fim, percebo que há algo muito grave na história dessa família e eu tenho o poder de interferir nisso ou não, não queria este peso, não precisava disto, não precisava mesmo... eu não quero.
Sei que ele voou, talvez demais.
Devo voar também? Acho que não.
Enfim, acho demais, não sei o que fazer. Isso não é nada confortável, mas é assim que tem que ser.
Eu covarde como sempre.

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